Título: Niemeyer pede socorro
Autor: Bianca Tinoco
Fonte: Jornal do Brasil, 05/03/2006, Caderno B, p. B1

Enquanto o arquiteto Oscar Niemeyer continua em franca atividade aos 98 anos, em seu escritório em Copacabana, pelo menos dois conjuntos de construções desenhados por ele e inaugurados nas décadas de 70 e 80 passam neste momento por degradação e preocupam órgãos mundiais de conservação do patrimônio. Em Trípoli, segunda maior cidade do Líbano (não confundir com outra Trípoli, capital da Líbia), o Centro de Exposições planejado pelo arquiteto em 1962 encontra-se vazio e não concluído, sem nunca ter sido utilizado. Também conhecido como Feira Internacional de Trípoli, o grupo de pavilhões está sob ameaça da Câmara de Comércio e Indústria da cidade, que pretende transformá-lo a partir deste ano em um parque temático.

Na França, a Casa de Cultura, ou Espaço Niemeyer, em Havre, inaugurada em 1982 e tombada pelo Patrimônio Mundial da Unesco, sofre com a falta de manutenção devido à fragilidade do concreto frente às variações do clima do local. Nos dois casos, ONGs tomaram a frente na defesa dos monumentos, enquanto os órgãos do governo brasileiro passam ao largo da questão.

Considerado um dos ícones da arquitetura moderna, o Centro de Exposições de Trípoli ocupa uma área oval de mais de 1 milhão de metros quadrados. Inclui o Pavilhão Internacional, de formato curvo, o pavilhão libanês, um museu espacial e um sobre habitação coletiva, um teatro experimental e um a céu aberto, entre outros. Construído de 1968 a 1974 e abandonado em meio à guerra civil que assolou o país de 1975 a 1990, ele apresenta relativo bom estado de conservação, mas é considerado um dos 100 sítios com maior risco de ser extinto, segundo a ONG World Monuments Watch, ligada ao World Monuments Fund (WMF). Isso porque a Câmara de Comércio e Indústria de Trípoli anunciou, em 2004, seus planos de transformar o local em um complexo de entretenimento nos moldes dos parques da Disney. As obras, segundo a ONG Patrimônio sem Fronteiras, que tem sede em Paris, começariam no final deste ano.

Ainda segundo a ONG, o projeto de ocupação, estimado em US$ 230 milhões, prevê um parque aquático com piscinas e atividades náuticas, três hotéis internacionais, lojas de artigos artesanais e centros de diversões eletrônicas, interligados por um sistema de trens turísticos. Para que o local comporte os novos equipamentos culturais, alguns dos prédios de Niemeyer podem ser demolidos. O arquiteto acompanha de perto a questão e torce para que autoridades brasileiras intercedam por sua obra:

- Alguns veículos de comunicação da Europa, como o jornal francês Le Monde, estão tentando conscientizar a comunidade internacional sobre Trípoli. É um grupo importante e extenso de obras minhas, muito maior do que o Caminho Niemeyer (em Niterói). Quem sabe o Itamaraty pode entrar no caso e procurar soluções - sugere.

Procurado pela reportagem, o Ministério das Relações Exteriores indicou que fosse ouvida a Embaixada do Brasil em Beirute, capital do Líbano. O conselheiro da embaixada, Claudio J. de Campos, contou não conhecer a fundo o que se passa com o complexo planejado por Niemeyer.

- A Câmara de Comércio de Trípoli tenta reativar o espaço, mas não temos acompanhado. A Embaixada do Brasil em Beirute desconhece qualquer plano de reconstrução do conjunto - afirma o conselheiro.

Mas os planos existem. De acordo com um documento publicado em 2004 pela Patrimônio sem Fronteiras, assinado pela administradora libanesa da entidade, Jade Tabet, e pela presidente, Béatrice de Durfort, o projeto será um ''massacre da arquitetura de Niemeyer'', com adição de prédios de pastiche neolibanês, ocupação desordenada dos espaços de paisagismo e incoerência do conjunto. É também o que teme Marty Hylton, diretor de desenvolvimento de novos projetos da World Monuments Watch:

- Falta reconhecimento de como construções como as assinadas por Niemeyer são historicamente importantes. O moderno ainda não dispõe do prestígio de ser visto como patrimônio em muitos lugares. Além disso, sabe-se pouco a respeito de como restaurar esses monumentos.

Também em 2004, o arquiteto libanês George Arbid, professor de Harvard, começou a mobilizar a comunidade acadêmica mundial coletando assinaturas para impedir a concretização do processo. Arbid recebeu o apoio do Grupo Internacional de Trabalho para Documentação e Conservação de Sítios, Construções e Vizinhança do Movimento Moderno (Docomomo), uma ONG ligada à Unesco com representantes em 47 países. Coordenador do Docomomo no Brasil, o professor Hugo Segawa (USP) diz que Trípoli poderia ter mais proteção se fosse Patrimônio Mundial pela Unesco.

- Sem dúvida trata-se de um complexo que é um valioso testemunho de sua época, da arquitetura moderna. O problema é que mesmo a Unesco tem problemas em reconhecer como patrimônio construções com até 50 anos. São poucas as obras modernas tombadas - diz Segawa.

O presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Luiz Fernando de Almeida, não conhecia o conjunto de Niemeyer e prometeu procurar mais informações. O departamento jurídico do Iphan informou que, como se trata de uma construção estrangeira e mantida também com capital privado, apenas a Unesco pode intervir, caso se trate de um prédio reconhecido como Patrimônio da Humanidade.

Trípoli não está sob proteção da Unesco, mas outro conjunto de Oscar Niemeyer, este sob a guarda da instituição internacional, também passa por maus bocados. Em Havre, maior porto da Normandia, a Casa de Cultura projetada por Niemeyer em 1972, inaugurada dez anos depois e também conhecida como O Vulcão (por seu formato), está começando a entrar em erupção por falta de cuidados. O conjunto de dois prédios, considerado um dos mais ousados do arquiteto brasileiro - ele rebaixou em quatro metros a praça que sedia a construção, para abrigá-la do vento -, encontra-se em estado de deterioração, com manchas na estrutura em concreto e elementos descaracterizados.

Na fachada do centro cultural, que sedia também um teatro, acumulam-se cartazes das atrações do local, formando uma aparência próxima à dos tapumes e muros cariocas. Um peixe azul, originalmente pintado na fachada, desapareceu. E a maresia e o vento frio vindos do Canal da Mancha corroeram a rampa de acesso e uma escultura com exposição permanente ao ar livre. A situação é tão feia que o prefeito da cidade, Antoine Rufenacht, tirou a Casa de Cultura do material de divulgação turística de Havre.

Também no caso de Havre, a denúncia do estado de conservação da construção coube a um especialista em arquitetura moderna, o jornalista francês Édouard Bailby. Pesquisador da obra de Niemeyer - publicou na França o livro de sua autoria Niemeyer por ele mesmo (Balland) -, Bailby deu início ao debate sobre uma reforma no conjunto ao visitá-lo em novembro e se espantar com a falta de conservação. Bailby escreveu o artigo Ultraje a Oscar Niemeyer, editado na revista Espaços latinos.

- Sou amigo de Niemeyer e este foi o modo que encontrei de chamar atenção para Havre. O estado do prédio não é catastrófico, mas preocupa. Todo monumento, mesmo moderno, precisa ser reformado a cada cinco anos, senão estraga - alerta Bailby.

O artigo do jornalista francês provocou a resposta do prefeito da cidade. Antoine Rufenacht divulgou na imprensa francesa que uma reforma já está nos planos da prefeitura de Havre e que o governo francês se compromete a pagar parte das despesas, uma vez que o custo previsto para a recuperação é alto. O prefeito aguarda de Niemeyer o projeto da Casa de Cultura, para que a restauração seja fiel, mas o escritório do arquiteto informou que nada do gênero foi enviado à França até o momento.