Título: Dilema petista
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 23/11/2004, Outras Opiniões, p. A11

Abraham Lincoln, no seu famoso discurso em Gettysburg, cunhou a frase consagrada pelos adeptos do regime democrático: ''O governo do povo, para o povo e pelo povo''. A frase, emblemática, não era original. O pregador abolicionista Theodore Parkes, em 1850, escreveu: ''A idéia americana de democracia é a do governo para todo o povo, pelo povo e para o povo''. Talvez a esquerda do PT esteja decepcionada com o governo Lula, e pense que ele, como presidente da República, está mais perto do monarca D. Pedro I, para quem a frase do abolicionista do Século 19 deveria ser: ''governo para o povo, nunca porém pelo povo''. Não é outra a ilação que se pode tirar das declarações de preeminentes petistas demitidos, a pedido ou não, do escalão superior da administração pública e até mesmo, da assessoria pessoal do presidente Lula, como é o caso de Frei Beto, de codinome Vitor, ou Ronaldo, quando membro da facção guerrilheira comunista de Marighella, a Ação Libertadora Nacional (ALN). De um ideólogo dos primeiros tempos do PT, e dele afastado faz meses, o sociólogo Francisco de Oliveira, referindo-se aos que deixaram o governo, ou do governo foram expelidos, desabafou: ''O governo está se desmilingüindo, por um lado, e, por outro, a cara de centro-direita está aparecendo mais nítida. Os compromissos assumidos estão sendo tão fortes que esse tipo de pessoa não está agüentando ficar''. O governo é responsabilizado pelo pífio desempenho eleitoral, em outubro deste ano, em que o PT perdeu a prefeitura de Porto Alegre, há 16 anos em seu poder, e a de São Paulo, na qual o presidente Lula se empenhou às claras, a ponto de ser multado pela Justiça Eleitoral. As dissidências crescem no âmbito do partido da estrela vermelha, no Diretório Nacional reunido em São Paulo, recentemente, sob o efeito de declarações contundentes, além das do sociólogo desapontado. O radical ex-presidente da Comissão de Mortos e desaparecidos, senhor Duboc Pinaud, na carta de demissão ao presidente Lula, acusa o governo de ''ter posições antagônicas'' e exorta o presidente a ''não ser refém da força bruta'', no caso o Exército na questão dos arquivos que ''se ocultados, equivale a aprovar torturas''. Assumindo a condição de julgador, conclui dizendo dever o presidente à sociedade brasileira, de quem se investe da condição de lídimo representante, ''a correção de alguns desvios''.

Outro exemplar de personalidade polêmica, presidente demitido do BNDES, o nacionalista extremado Carlos Lessa, em entrevista anterior à passagem do cargo, que trai o ressentimento (e olhe que não foi demitido pelo telefone, como o senador Cristovam Buarque) é contumelioso, como dizia meu velho professor de português, no Ginásio Paraense. Ataca a política econômica, a exemplo do hábito que cultivava ainda presidente do BNDES. Responsabiliza-a pela existência de 12 milhões de desempregados, alfinetada que deve doer na pele do presidente Lula que, em sua campanha vitoriosa, prometeu criar 10 milhões de empregos. Continua alfinetando, cercado de admiradores, muitos deles tão exaltados quanto ele, aproveitou o clima que proporcionava uma grandiloqüência monopolista da verdade de quem, confessado ''homem de elite mas deslumbrado pelo povão brasileiro'', nada o fez mudar de opinião. Tanto que aduz, em relação aos que estão sendo demitidos ou pediram demissão do governo: ''Eu acho que o que estamos assistindo é mais uma manobra astuciosa da elite. É mais uma tentativa de frustrar sonhos populares''. Elogia Lula ''uma demonstração inequívoca da espantosa capacidade do povo brasileiro'', poupa-o de um modo sutil de dizê-lo ingênuo, falha imperdoável em um líder e, mais, de um estadista, mas afirma: ''O presidente está sendo enganado pela elite''.

Outros críticos, de menor prestígio midiático, também acusam a equipe econômica de ser o cavalo de Tróia, nessa batalha cruenta, onde só ''se incineram as bandeiras nacionais dos Estados Unidos e se erguem inevitáveis cartazes apontando o famigerado FMI''.

A perda de Frei Beto é nada comparada com a do Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, que entre caridoso e amável censor, diz: ''O Lula continua a mesma pessoa bondosa de sempre. Mas não estava preparado para ser presidente da República. Então entrega tudo para aqueles que parecem estar preparados, e esses muitas vezes se enganam''. Entre os que ''se enganam'', figuram, no carro-chefe da política social (o Fome Zero), o professor Graziano e Frei Beto, e no Bolsa Família agora com o ministro Patrus Ananias em choque com a secretária executiva Ana Fonseca, enquanto pululam as provas de fraude e total perda de controle do Programa, outro empreendimento que é a menina dos olhos do presidente Lula. Razão tinha desde o início, ao que parece, dom Mauro Morelli, que não mais quis legitimar a inoperância. Diferente de Lincoln e de D. Pedro I, o presidente está sendo acusado, pela esquerda petista, de fazer um governo do povo, pelo povo, mas não muito para o povo.

Jarbas Passarinho escreve quinzenalmente nesta página.