Título: Esquerda, volver? Para quem?
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 07/03/2006, Outras Opiniões, p. A11

No debate que movimentou esta página, semana passada, não tenho dúvidas em me alinhar, em abstrato, com o ex-ministro José Dirceu, ao se confrontar com as posições de porta-vozes da direita reacionária brasileira. Mas se digo ''em abstrato'' é porque vejo significativa incompatibilidade entre a retórica e a práxis do ainda líder petista. A quem Dirceu se dirigia, afinal, quando titulou o bem fundamentado artigo com um sugestivo ''Esquerda, volver''? Mistério. Porque, à própria direita, não faria sentido. E também não foi, como se poderia deduzir do título, ao presidente Luiz Inácio, por conta da campanha eleitoral já deslanchada. Pelo contrário, Dirceu insiste em qualificar o governo como sendo de esquerda, utilizando argumentos compensatórios numa intensidade que nem o Planalto ousa assumir. Mais: até rejeita. E, por aí, deixa no ar uma deliberada confusão, com direito a um ''assim é se lhe parece''.

Tenta cunhar semelhanças irreais de Lula com Chávez e Evo Morales, como se não tivesse claro o tratamento totalmente distinto que cada um recebe do governo Bush. Age como se não tivesse sido entregue aos leões pelos que não hesitaram em blindar Meirelles e Palocci, e em delegar a agricultura ao lobista do latifúndio, Roberto Rodrigues, no atendimento da direita que ele mesmo reconhece continuar no poder. A direita que se locupleta na especulação financeira garantida pelo Estado, como mostrou a edição dominical do JB, com a reportagem de Samantha Lima denunciando o privilégio tributário dos banqueiros. Estão aí, protegidos pelo mais deslavado populismo assistencialista. Para que se comprove isto com cifras, basta comparar o que o governo aplicou no bolsa família com aquilo que propiciou de lucros recordes, sem riscos, aos grandes rentistas: são R$ 154 bilhões despendidos nos títulos da dívida pública concentrados no bolso dos banqueiros, contra R$ 8 bilhões para anestesiar e desmobilizar algo em torno de 10 milhões de famílias miseráveis.

Populismo assistencialista, é bom que se reafirme. E que qualquer compêndio sério de política trata como conceito bem mais próximo do fascismo do que do socialismo, principalmente considerando-se exemplos latino-americanos do século XX. Não tem nada a ver, portanto, com instrumento de um governo de esquerda.

Não bastasse isso, valeria considerar o que o presidente declarou à revista The Economist, a bíblia dos famigerados mercados, nas vésperas da visita à corte britânica. Aí ele afirma que, ''se reeleito, quer levar a cabo as reformas trabalhista e sindical, além de novas mudanças na Previdência Social e no arranjo tributário do país''. Não seria necessário traduzir, mas vamos lá: flexibilização das leis do trabalho, término da liquidação da Seguridade Social Pública, tendo em vista o ''aumento da longevidade'' da população, e apenas um remendo na injustiça tributária brasileira. O que isso tem a ver com os governos de esquerda que, na América Latina, seriam alvos da direita? Alguém proporia tais itens de campanha num comício em Caracas ou La Paz, dizendo-se partidário dos governos Chávez ou Morales?

É verdade que não fala em privatização do Banco do Brasil, da Caixa Econômica e da Petrobras, certamente pontos de destaque na pauta de um retorno da parceria tucano-pefelista ao poder. Mas é essa não menos nociva privatização de direitos sociais que marcaria uma guinada à esquerda de um eventual segundo governo? Pelo contrário. É a confirmação de uma opção doutrinária, confirmada na proposta de política de alianças tranquilamente confessada, pois já em curso: PP, PTB, PL, e que venha tudo o mais da direita mensalista corrupta. O poder pelo poder não exige coerência.

Se Dirceu quiser recuperar o perfil que já teve, condizente com seu passado mais distante, e se afastando do pragmatismo mais recente, pode fazê-lo. Defendendo uma segunda Carta aos Brasileiros em que se proponha reforma tributária de fato, e nada de ''arranjo'' como é sugerido na entrevista. Aliviando a carga dos que vivem do trabalho, e taxando os hoje isentos da especulação financeira, como garantia permanente de justa distribuição de renda. Defendendo a ampliação de direitos sociais.

Explicitando isso, Dirceu será bem-vindo entre os que nunca se afastaram do que sempre prometeram. E estaria legitimado para combater a direita reacionária.