Título: Protocolo de Cartagena: o preço da divisão
Autor: Gilman Viana Rodrigues
Fonte: Jornal do Brasil, 07/03/2006, Outras Opiniões, p. A11

A falta de consenso do governo federal em relação ao método de identificação de Organismos Vivos Modificados (OVMs) prevista no Protocolo de Cartagena poderá custar caro ao agronegócio brasileiro. O setor privado defende a manutenção da expressão ¿Pode Conter OVMs¿ na regulamentação do tratado, definida em Montreal, no Canadá, em 2005, e ratificada pelo Brasil. Há, no entanto, divergências entre vários países que defendem o termo ¿Contém OVMs¿ e que encontram ressonância em segmentos internos da estrutura governamental guiados pela ausência de lucidez sobre os benefícios da biotecnologia e o tamanho da conta a ser paga pelo produtor brasileiro. Admitir a expressão ¿Contém OVMs¿ significa obrigar-se a informar contém o que e o quanto. Para atender a tal requisito, são indispensáveis inúmeras análises, lote por lote, e a segregação do produto a ser exportado. Um exemplo que clarifica o impacto de uma possível mudança de posicionamento brasileiro está na exportação de soja. Realização de testes extremamente caros nos portos de embarque e desembarque e a obrigatoriedade de segregar e rastrear o grão custaria aproximadamente US$ 1 bilhão ao País, o correspondente a 10% das exportações totais do complexo soja, em US$ 10 bilhões em 2005. A conta tem endereço certo: o produtor.

É o mesmo personagem que tem sofrido com a queda de rentabilidade do setor rural, em cerca de R$ 17 bilhões em 2005. O produtor, mais uma vez, terá que arcar com o custo da burocracia para embarcar a mercadoria para o exterior. Significativos serão os investimentos em infra-estrutura para adaptar o processo logístico. Além do custo econômico, a rigidez da opção ¿Contém OVMs¿ vai atuar como inibidor do avanço da pesquisa e da biotecnologia na agricultura. E, o que é pior, poderá comprometer o esforço exportador do país, afetando sua competitividade no cenário mundial. Não é de se esperar que o governo faça a opção de onerar o próprio Brasil.

Apesar da decisão de Montreal, a polêmica sobre a identificação dos OVMs ainda não está harmonizada. O Brasil sediará, entre os dias 13 e 17 de março, a terceira reunião dos Países Membros do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, em Curitiba (PR). Integram o tratado 130 países. O Brasil é o único grande exportador agrícola que assinou e ratificou o protocolo. Estados Unidos, Argentina, Canadá, concorrentes na exportação de grãos, sequer assinaram o documento, em vigor desde 11 de setembro de 2003. Ou seja, concorrentes do Brasil não se obrigaram aos mesmos custos e procedimentos que o Brasil se obrigaria.

Nas últimas duas conferências, os países-parte não chegaram a um consenso. O Brasil adotou, a partir de Montreal, a opção ¿Pode Conter OVMs¿ baseada no pressuposto de que tal identificação garante o nível de biossegurança que o Protocolo objetiva e evita custos desnecessários.

O setor do agronegócio está bastante apreensivo com os eventuais resultados da reunião. A maior parte dos países-membros são importadores de alimentos que buscam, por meio do tratado, implementar regras mais restritivas para o comércio de produtos geneticamente modificados. Muitos defendem posições que extrapolam as preocupações referentes a biossegurança ¿ a essência do Protocolo ¿ o único tratado internacional que regulamenta a circulação de OVMs no mundo. Todas as informações sobre OVMs autorizados estarão num um banco de dados ¿ Biosafety Clearing-House. Elas poderão ser acessadas pela internet e não será necessária a realização de testes, onerosos, cujos custos acabariam repassados aos produtores e consumidores.

O Brasil não teria condições de cumprir com os requisitos do processo de segregação, uma vez que não dispõe da infra-estrutura requerida, e, tampouco, de recursos para readequá-la às novas exigências. ¿Contém OVMs¿ pode ensejar, ainda, o uso do Protocolo como barreira técnica contra as exportações brasileiras.

Além disso, a posição brasileira se baseia no fato de o país já ter feito o seu dever de casa, ao incorporar, à sua legislação, uma moderna e rígida Lei de Biossegurança. Assim, grande parte de potenciais riscos que devem ser considerados sobre um produto transgênico é eliminada na análise requerida pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para a autorização comercial.

No Brasil, o cultivo de transgênicos tem crescido de forma significativa, alcançando cerca de 9,4 milhões de hectares em 2005, ou seja, quase 20% da área plantada. O país é o terceiro no ranking do cultivo de transgênicos, superado apenas pelos Estados Unidos e Argentina, nações à margem do Protocolo de Cartagena.