Título: Imperialismo diet no Haiti
Autor: Carlos Tautz
Fonte: Jornal do Brasil, 09/03/2006, Outras Opiniões, p. A9

Se o Brasil não comandasse as tropas da ONU no Haiti, vocês veriam o que realmente significa a expressão ''uso da força''. Nós ocupamos este país Caribenho de uma forma diferente do que fariam Estados Unidos e França. Eles depuseram em 29 de fevereiro de 2004 um presidente democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, mas nossos soldados agora jogam futebol com as crianças em Cité Soleil, uma das maiores favelas de Porto Príncipe, e as ensinam a recolher o lixo. Foi mais ou menos com essas palavras que, há exatamente um mês, o embaixador Antônio Patriota defendeu a participação do Brasil na invasão. Diante de um grupo de organizações da sociedade civil, que expressaram solidariedade aos haitianos e lembraram o governo de nossa histórica defesa do princípio da não-intervenção, o diplomata nos disse que nada de diferente seria feito até o final da intervenção da ONU, somente daqui a cinco meses.

Na prática, a posição oficial do governo Lula é: nós impomos aos haitianos nossa vontade de forma mais branda e simpática do que fariam estadunidenses e franceses. É mais ou menos assim: podemos intervir no Haiti porque nosso imperialismo é melhor do que o dos outros. O nosso seria uma espécie de imperialismo diet.

Em verdade, o Brasil pratica no país caribenho uma política semelhante ao que fazem os EUA no Iraque. Hoje, enviamos soldados. Amanhã, mandamos ''nossas'' empresas e financiamentos para ''reconstruir'' o país. Se isto vai resultar em mais dívida externa - uma das verdadeiras razões da crise haitiana -, na privatização dos serviços públicos e na manutenção de um modelo de desenvolvimento que destruiu aquela nação, não é problema nosso.

O que levou o Brasil a comandar tropas militares no Haiti nada tem de humanitário nem de digno. As razões verdadeiras foram a tara por uma vaga no Conselho de Segurança da ONU e a exportação do capitalismo verde-amarelo, estratégia que o Brasil vem desenvolvendo em relação a outros países da América do Sul e da África.

Para alcançar esses objetivos, Brasília topa qualquer negócio. Inclusive tomar parte de um novo paradigma de ocupações da ONU, como denunciou o argentino Adolfo Pérez Esquivel. Agora, observa o Prêmio Nobel da Paz de 1980, países do sul lideram a parte militar da intervenção (no caso, o Brasil) e também a dimensão diplomática (o Chile), fazendo o serviço sujo que antes era monopólio das grandes potências.

O embaixador patriota argumentou que não é possível comparar as invasões do Haiti e do Iraque. A invasão deste último, segundo ele, deu-se sem qualquer autorização da ONU, enquanto a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) possui esse reconhecimento legal. Entretanto, o embaixador esquece-se de que, quando EUA e França depuseram um presidente democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide, em 2004, não detinham qualquer mandato, o que só foi votado pela ONU posteriormente.

A crise no Haiti não foi deflagrada pela saída de Aristide, como dá a entender a cobertura da imprensa internacional, mas foi provocada por quase 30 anos de aplicação de políticas neoliberais. Até René Préval, o presidente recém-eleito, tomou parte desse processo quando ocupou o mesmo cargo entre 1996 e 2001. Foi esse corolário do Consenso de Washington que ajudou a elevar a dívida externa haitiana a quase dois bilhões de dólares.

A crise haitiana não tem solução militar. Necessita, isso sim, de ações humanitárias baseadas no direito internacional e em consenso com a sociedade do Haiti. Entre elas estão o cancelamento da dívida externa do país e o aporte prometido pelos países ricos, e até agora não concretizado, de recursos humanos, políticos e econômicos para, em conjunto com as legítimas organizações da sociedade haitiana, deixar o Haiti encontrar o seu próprio caminho. E sem a intervenção de qualquer potência estrangeira, tenha ela a cor da bandeira que tiver.