Título: Política nas telas da capital
Autor: Rodrigo Fonseca
Fonte: Jornal do Brasil, 23/11/2004, Caderno B, p. B3

Festival de Cinema de Brasília, que tem início hoje, é marcado por filmes com teor político

Em 2003, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi conjugado no futuro do pretérito. Uma seleção de novos trabalhos da velha guarda da produção audiovisual do país tornou histórica aquela edição. A 37ª edição da mostra cinematográfica brasiliense, que começa hoje no centro nervoso da República, ficará marcada por um motivo diferente: a programação põe sob a ribalta um presente tingido em fortes tintas políticas. Poucas vezes em sua história, que já abraçou libelos anarquistas de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, o Festival apresentou um cardápio tão explicitamente politizado.

Dois documentários relacionados ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Peões, de Eduardo Coutinho, e Entreatos, de João Moreira Salles -, o thriller sobre a ditadura militar Cabra cega, de Toni Venturi, e uma exibição da cópia restaurada de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, elevam os níveis de nitroglicerina de uma programação de longas que será aberta por uma saga que revisita a formação da capital da nação. Sem bater objetivamente nas questões do poder, o longa brasiliense As vidas de Maria, de Renato Barbieri, será exibido hors-concours na noite de hoje, dando a largada para o festival que a partir de amanhã inicia sua seleção competitiva de longas e curtas em 35mm e 16mm.

Estrelado por Ingra Liberato, As vidas de Maria acompanha os 43 anos de uma mulher que nasce assim que Brasília é inaugurada.

- Há um lado meu de documentarista que tenta buscar o lado histórico dos fatos que marcaram a capital federal no período em que o filme se passa, como o golpe de 64, por exemplo. Mas os acontecimentos sempre são narrados em paralelo à história de Maria, que é o eixo do longa. As vidas de Maria é, antes de tudo, um filme de personagem - explica Barbieri, que, nos anos 80, ao lado de Fernando Meirelles e Paulo Morelli, foi um dos diretores da produtora Olhar Imaginário, que deu origem à toda-poderosa O2.

Mais do que apresentar seu primeiro longa de ficção, Barbieri será um dos profissionais que vai avaliar os longas concorrentes ao troféu Candango. Ele é um dos membros do júri constituído pelo diplomata Edgard Telles Ribeiro, o crítico e professor de cinema da Universidade de São Paulo Ismail Xavier, os cineastas Jorge Bodanzky, Lina Chamie e Lucia Murat e a atriz Maria Luiza Mendonça. O primeiro dos seis concorrentes a ser julgado é 500 almas, uma produção capitaneada por Joel Pizzini, que investiga o cotidiano dos índios da tribo guató, do Mato Grosso.

- 500 almas é um caminho para falar da presença e da ausência de memória em uma sociedade - define Pizzini, que já fez vários documentários para a TV, entre eles o lírico Um homem só, sobre o ator Leonardo Vilar.

Sua investigação cultural opera a partir de um minucioso estudo da linguagem guató, mas não fecha seus olhos para a compreensão dos movimentos políticos de luta pela terra a partir da questão indígena. Sua abordagem parece ter encontrado a plenária adequada no festival brasiliense, que segundo Pizzini é um foco de resistência.

- Brasília é um fórum para uma leva de realizadores que são independentes da safra que hoje é hegemônica no cinema nacional - diz Pizzini.

Toni Venturi, diretor de Cabra-cega, uma história de amor entre dois guerrilheiros (vividos por Leonardo Medeiros e Débora Duboc), ambientada nos anos de chumbo do regime ditatorial militar, fecha com Pizzini sobre a importância dos festivais para a ala independente do cinema nacional.

- Se há uma leva de filmes políticos em Brasília, isso acontece porque grandes festivais naturalmente atraem filmes que falam sobre os problemas do Brasil. É papel das mostras ser uma vitrine para a autoralidade cinematográficas. Até porque os filmes industriais, que fazem número nas bilheterias, não precisam da chancela dos festivais - diz Venturi, que exibe seu filme na quinta-feira.

Na sexta, Brasília recebe o papa do documentário nacional, Eduardo Coutinho, que entra na competição pelo Candango com seu recente Peões. O longa narra a diáspora dos operários de São Bernardo do Campo que participaram do movimento sindical durante as grandes greves no ABC paulista de 1979 a 1980. Entre os trabalhadores que dão depoimentos, estão contemporâneos de Lula, que falam sobre o colega que chegou à presidência.

Lula volta a aparecer nas telas do Festival de Brasília em Entreatos, de João Moreira Salles, que será exibido hors-concours, no encerramento da mostra, no dia 30. No longa, o diretor registrou episódios da campanha presidencial do PT em 2002. Um dos maiores documentaristas da atualiadade, João não sabe se a recente badalação em torno de Entreatos e Peões pode abrir um veio para uma nova leva de filmes sobre líderes de governo no cinema brasileiro.

- A gente nunca sabe qual o efeito que um filme terá. Aliás, com raras exceções, não se faz documentário para produzir esse ou aquele efeito. Acho, no entanto, que o processo político é um tema importante. É uma pena que muita gente tenha perdido interesse nele. A política perdeu investimento moral. Isso é perigoso. Primeiro porque deixa o campo aberto para os aproveitadores de praxe; segundo porque iguala homens honrados a velhacos. É o primeiro passo para que se desconfie da democracia - diz João.

Sábado, o longa baiano Cascalho, de Tuna Espinheira, resgata o romance homônimo de Herberto Salles para revolver o drama dos garimpeiros obcecados por pedras preciosas. À frente do elenco está Othon Bastos.

Também haverá espaço para o riso em Brasília. Militam no campo do humor Bendito fruto, de Sergio Goldenberg, exibido no domingo, e O diabo de quatro, de Alice de Andrade, último filme em competição, com exibição no dia 29. Filha do cinemanovista Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), diretor de Macunaíma (1969), Alice conta em seu longa de estréia a rocambolesca trama em tons policiais que une um surfista viciado (Marcelo Faria), um gigolô (o palhaço Márcio Libar), um menino do interior (Netinho Alves) e uma fascinante jovem prostituta (Maria Flor).

Já Goldenberg, em Bendito fruto, aborda um divertido jogo de sedução entre um cabeleireiro (Otávio Augusto) e uma viúva (Vera Holtz), que abala o casamento que ele não assume com sua empregada negra (Zezeh Barbosa).

- Bendito fruto não deixa de ter um tom político, já que aborda o conflito racial. Mas trata essa questão por um viés afetivo, emocional e, espero, engraçado - diz Goldenberg.

Entre os eventos paralelos de Brasília, dia 25 será exibido a cópia nova de Terra em transe, seguido de debate com a diretora Paloma Rocha, filha do cineasta e co-realizadora do projeto de restauração do filme ao lado do produtor Tarcisio Vidigal, e os técnicos responsáveis pelo processo.