Título: Imagens imortais
Autor: Sergio Martins
Fonte: Jornal do Brasil, 09/03/2006, Caderno B, p. B1

A história do cineasta Nelson Pereira dos Santos inegavelmente se confunde com a própria trajetória do cinema brasileiro. E se as imagens de seus primeiros filmes, precursores do Cinema Novo, já eram imortais, a partir de hoje, mais precisamente às 16h, ele deve se tornar um. Sua vitória na eleição para ocupar a cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL) é líquida e certa. A festa já foi até encomendada. Será na casa do ex-presidente da Academia, Austregésilo de Athayde (já falecido), no Cosme Velho. Os outros candidatos são: Paulo Hirano, Dário Castro Alves, Waldemar Cláudio dos Santos, Jorge Tannuri e Ronaldo Cunha Lima. Mas, independentemente de ser o primeiro cineasta a ocupar uma cadeira na ABL, a relação de Nelson Pereira dos Santos com a literatura é íntima e vem de muito tempo. Entre seus mais de 20 filmes, feitos em mais de seis décadas, muitos são adaptações literárias, como Vidas secas (1963) e Memórias do cárcere (1984), a partir de Graciliano Ramos; Azyllo muito louco (1970), versão de O alienista, de Machado de Assis, por coincidência (ou não) um dos fundadores da Academia e seu primeiro presidente; Tenda dos milagres (1977) e Jubiabá (1987), de Jorge Amado; A terceira margem do rio (1994), de Guimarães Rosa; e O Boca de Ouro (1962), de Nelson Rodrigues. Até livro teórico ele já adaptou. Foi Cinema de lágrimas, de 1995, inventado a partir do livro da pesquisadora Sílvia Oroz sobre o melodrama latino.

¿ Sempre tive uma afinidade grande com a literatura. Desde jovem sou um leitor assíduo. Sem contar minha admiração pessoal pelas figuras de escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, por exemplo, só para citar três dos que filmei pelo menos uma obra ¿ diz ele.

Mas o livro que está levando Nelson Pereira dos Santos a uma vaga na Academia, cumprindo a determinação de o candidato ter escrito pelo menos um, curiosamente, tem pouco a ver com literatura. É Três vezes Rio, a reprodução dos roteiros dos filmes Rio 40 graus, realizado na década de 50 e inspirado no neo-realismo do cinema italiano, Rio Zona Norte, o segundo filme da trilogia sobre as favelas cariocas que imaginou mas não concluiu, e O amuleto de Ogum, uma incursão realista na Baixada Fluminense.

¿ Sou um roteirista. Escrevi o roteiro, que também é uma forma de literatura, de todos os meus filmes ¿ diz ele, justificando sua presença na casa de Machado de Assis.

A indicação e eleição de Nelson Pereira dos Santos, um cineasta, para se tornar um dos imortais da ABL é uma novidade no Brasil. Na França não é. A Academia de lá teve como um de seus integrantes, em parte da segunda metade do século passado, um dos mais exponenciais cineasta francês: René Clair, morto 1981, aos 82 anos, depois de se tornar um dos ícones do cinema da daquele país e autor, assim como o brasileiro, de livros sobre roteiro cinematográfico. Mas o exemplo francês não parece suficiente para o brasileiro se dizer, digamos, com a mão na taça:

¿ Qualquer comparação entre nós deve ficar restrita à indicação para as Academias. Longe de mim querer me comparar com o René Clair. O pessoal pode pensar que o fato de a festa estar pronta significa que minha vitória está garantida. Não é bem assim. Independentemente de vencer ou não, cada candidato se compromete a fazer um coquetel para os acadêmicos. Isso é uma tradição da Academia. Sobre o fardão, vamos esperar mais um pouco antes de decidir o que fazer. Mas que a festa será um festão não tenho dúvidas ¿ diz ele, no escritório da sua produtora cinematográfica, no Centro do Rio, com um involuntário sorriso de vitória estampado no rosto.

Mal sabe ele que sua vitória está configurada desde a manhã de anteontem, com a confirmação dos votos suficientes (na casa funciona a regra da metade mais um) e a desistência de um de seus mais fortes concorrentes, o embaixador Dário Castro Alves, que retirou a candidatura porque dera como certa a vitória do cineasta.

Na eleição de hoje votam 37 acadêmicos. Das 40 cadeiras, duas estão vagas (a nº 7, deixada vazia pela morte do embaixador Sérgio Corrêa da Costa, será preenchida na eleição de hoje, e a nº 28 na quinta-feira que vem). O acadêmico Josué Montello está licenciado da casa por motivos de saúde e não votará.

¿ Não acho apropriado falar de vitória neste momento. Vamos deixar para depois da eleição. A ansiedade é muito grande, mas sei que conto com o apoio dos acadêmicos. Sei que a Ana Maria Machado, o Eduardo Portella, o Tarcísio Padilha, a Ligia Fagundes Telles, o Murilo Melo Filho, o Ivan Junqueira, o Alberto Venâncio Filho, a Zélia Gattai, o Moacir Scliar, o João Ubaldo, votarão em mim ¿ diz, em meio aos cartazes de seus filmes e contabilizando, de memória, dez dos 20 votos necessários.

Filho de um alfaiate com uma dona de casa, Nelson Pereira dos Santos nasceu em São Paulo em 28 de outubro de 1928. Formado em direito pela Escola do Largo do São Francisco, radicou-se de vez no Rio de Janeiro em 1950, época em que começou a idealizar a trilogia cinematográfica que acabou não terminando, mas que serviu de pontapé inicial para o Cinema Novo.

Seu primeiro filme, o documentário de 16mm Juventude, fez parte do Congresso Mundial da Juventude Comunista de 1950. O filme desapareceu e não existe mais cópia. O cineasta foi casado com a antropóloga Laurita Andrade Sant¿Anna, morta em julho de 1999, e tem três filhos, Nelson, Ney e Márcia, e cinco netos, Talita, Mila, Carolina, Bruno e Gabriel. Atualmente está casado com Ivelise Ferreira.

A decisão do embaixador Dário Castro Alves de retirar sua candidatura não se restringiu à vitória antecipada de Nelson Pereira dos Santos. Ele diz que a indicação do cineasta é importante para os novos rumos que a Academia pretende tomar, mudanças, segundo ele, que começaram a se delinear ainda nas últimas gestões dos presidentes da ABL.

¿ Acho que a inclusão de Nelson Pereira dos Santos entre os integrantes da Academia é muito importante. Há espaço para pessoas que são expoentes em outras áreas e essa diversificação será muito boa para a ABL. A eleição do Nelson tem outro significado e concordo com a filosofia de se expandir para outras áreas ¿ afirma o embaixador.

O acadêmico Murilo Melo Filho, por exemplo, diz não abrir mão do segredo de voto. Não declara abertamente ser eleitor de Nelson Pereira dos Santos, mas admite que a indicação do cineasta veio ao encontro dos rumos que a Academia pretende trilhar nos próximos anos.

¿ É filosofia da Academia atrair pessoas de destaque de outros segmentos culturais e o cinema está ocupando seu espaço entre nós. Sabíamos dessa necessidade e o Nelson, um grande cineasta, por sua obra e integração com a literatura, preenche todos os requisitos ¿ garante.