Título: A causa justifica os meios
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 14/03/2006, Outras Opiniões, p. A11

Em 1941, Solzenitsin era graduado físico na Universidade de Rostov-on-Don, na União Soviética. Tendo inclinação para as letras, mantinha um curso por correspondência com o Instituto de História, Filosofia e Literatura de Moscou. Invadido seu país pelas tropas de Hitler, alistou-se em outubro de 1941 no Exército Soviético e foi incorporado a uma bateria de Artilharia. No começo do ano seguinte, lutou com sua unidade em várias frentes. Em 1945 já era capitão comandante de sua bateria e recebera duas medalhas por bravura. A guerra aproximava-se do seu fim, e o capitão Alexandre Solzenitsin estava às portas de Berlim. Chamado por seu comandante, encontrou dois esbirros da temida polícia secreta, a KGB. Sem uma palavra, arrancaram-lhe as divisas de capitão na frente de seu coronel, que assistia impotente o que se passava. Consternado, viu levarem-no para Moscou para ser processado ''por atividade anti-soviética''. A prova do crime: ''Cartas para um amigo na retaguarda, nas quais tivera a ousadia imperdoável de criticar decisões táticas de Stalin''. A seqüência foi rápida: Corte Marcial secreta, a condenação, por um juiz militar de quem não viu o rosto, a oito anos de internação em campo de concentração. A justificativa superior: ''ele era punido pelo bem da causa e por depreciar Stalin''. Depois de cumprir integralmente a pena, após ser transferido de um campo para outro, não conheceu a liberdade. Simplesmente foi-lhe dito que fora sentenciado por ''exílio durante toda a vida'', dado o perigo que representava à causa soviética e à imagem de Stalin. Entrementes, contraiu câncer. Morto Stalin, substituído por Khrushev, a Suprema Corte da URSS reviu seu caso, extinguiu a pena de exílio, por ''ausência de provas da acusação original''. Generosamente, recebia mínima aposentadoria por invalidez, enquanto a esposa Natália era proibida de exercer a profissão de professora, e assim impedida de aumentar o orçamento familiar. Abrandado o regime, conseguiu autorização para publicar o romance Um dia na vida de Ivan Denisovich, nome dado por Solzenitsin para um prisioneiro de um dos campos de concentração stalinistas, que ele depois descreveria como Arquipélago Gulag. O efeito foi devastador, na medida em que os 95 mil exemplares foram comprados na Rússia, onde raras eram as famílias que não tinham tido um membro seu sofrido as agruras de um campo de concentração ou nele perdido a vida. Nenhuma cópia se encontrava, então, no exterior, senão datilografada. A censura voltou a ser rigorosa, novamente pelo bem da causa, por precaução inútil de Khrushev, que acabou deposto. Em 1970, a Academia Sueca de Literatura outorgou a Solzenitsin o prêmio Nobel de Literatura, mas ele não pôde recebê-lo em Stocolmo, pelo temor da repercussão internacional da cerimônia de entrega e do discurso do recipiendário. Pelo bem da causa, a União Soviética impediu-o de sair do território da URSS, ou ir e nunca mais voltar. À escolha. Oriana Fallaci, jornalista e escritora, que lutou na resistência italiana contra o fascismo, escreveu Entrevistas com a História, que teve dezenas de reedições. Dado o seu prestígio, entrevistou personalidades mundiais, de diversos matizes de pensamento. Dos latino-americanos, só Dom Helder Câmara. No Médio Oriente, ouviu Golda Meir, que presidia Israel, e os líderes palestinos, entre eles George Habash, fundador da Frente Popular da Libertação da Palestina. Era um médico rico, que esgotou toda a sua fortuna salvando vidas numa clínica, ajudado pelas irmãs de Nazaré. Pediatra, as crianças eram maioria, mas havia igualmente adultos, assistindo-os e lhes fornecendo gratuitamente medicamentos necessários. Certo dia, desapareceu. Fora comandar os guerrilheiros palestinos na vingança sem piedade dos judeus. Ordenava explosões de aviões comerciais israelenses, decolando da França, não importava que os passageiros fossem israelitas ou não. Explodia super-mercados em Londres, matando crianças e mulheres. Não poupava hospitais. A primeira pergunta que lhe fez Oriana foi por que os atos terroristas sucediam na Europa, numa guerra que não pertencia a ela. A resposta foi imediata: ''Na guerra temos que estabelecer de modo científico quem são nossos inimigos. Não é só Israel. O mundo se esqueceu de nós É chegado o momento de nos recordar''.

Essa era a causa e por ela se justificariam as mortes de civis, crianças e mulheres inclusive, num shopping londrino, os assassinatos de passageiros, neutros na luta, em aviões explodidos em vôo. Tudo para chamar a atenção do mundo que passava a ser um inimigo cientificamente responsabilizado.

Pelo bem da causa da reforma agrária, pratica-se, no Brasil, vandalismo. Recentemente um grupo do MST invadiu fazenda em São Paulo e queimou 2 toneladas de cana. Duas mil mulheres da internacional Via Campesina destruíram, no Rio Grande do Sul, um laboratório de pesquisas de mais de 20 anos sobre cruzamentos genéticos e seleção de espécies, um viveiro de mais de mil mudas de eucaliptos da empresa Aracruz. Stédile, o líder radical do MST, apoiou: ''As companheiras estão de parabéns porque tiveram coragem de fazer um ato para chamar a atenção da sociedade''. Modesto. Habash queria a atenção do mundo.

O MP estuda processá-lo. Inútil tentar. Por algo semelhante, foi processado em 2003. Nunca se apresentou ao juiz e o processo foi extinto em 2005. Pelo bem da causa, é claro.

Outro líder, que comandou a baderna, disse que o fazia em nome da soberania nacional e a saúde do povo!