Título: O caseiro e o ultramontano
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 17/03/2006, País, p. A2

Ainda bem que hoje é sexta-feira, e o fim de semana poderá arrefecer os ânimos. Brasília viveu ontem mais um dia inquieto, não só com a expectativa de que um caseiro - nesta República tão dependente do testemunho de secretárias e motoristas - viesse a fazer revelações sobre o ministro Antonio Palocci, mas também à espera de uma reunião da Comissão Executiva do PMDB que poderia produzir confronto ácido entre partidários de uma candidatura própria e do apoio a Lula, logo no primeiro turno. O senador Tião Viana, como já é de domínio público, obteve, do STF, liminar impedindo que o caseiro continuasse a ser ouvido pela CPI dos Bingos. Pelo que disse o caseiro, a casa, alugada por Vladmir Poletto, servia para encontros políticos ou de negócios, mas normalmente para encontros amorosos. Que o ministro tenha direito à privacidade, ninguém pode discordar. A vida privada de um homem público é assunto de seu único interesse. O que pode ser discutido é que haja usado, se usou, para sua privacidade, residência alugada por alguém de biografia tão confusa, de passado tão estranho, como é o caso de Vladmir Poletto, suspeito de ter servido ao então prefeito de Ribeirão Preto para atividades não recomendáveis. Mais importante foi a manifestação, nas últimas pesquisas de opinião, de 52% dos entrevistados, solicitando a mudança da política econômica. Lula pode respeitar a privacidade de Palocci, mas é improvável que o mantenha na chefia da política econômica, em ano eleitoral, contra a opinião pública. Em política, a revelação de pecados veniais costuma servir para corrigir pecado maior. O pecado maior é a manutenção das mais obscenas taxas de juros do mundo - só menores do que as usadas no governo anterior - em favor dos banqueiros e dos especuladores do mercado financeiro. O Brasil já chegou à marca assustadora de R$ 1 trilhão, ou seja, um bilhão de bilhões, na dívida pública interna. Não dá mais para que os trabalhadores continuem transferindo renda para o setor financeiro, enquanto as indústrias se retraem, retrai-se o consumo, e o PIB se reduz de tal maneira que até mesmo países africanos, com todas as suas graves dificuldades endêmicas, conseguem desempenho melhor do que o nosso.

Na tarde de sexta-feira, a demissão do ministro Palocci era vista como inevitável. O que se discutia era o prazo para isso. Alguns acreditam que ela poderá ocorrer nas próximas horas. Saídas honrosas não lhe faltam, como a da desincompatibilização a fim de disputar as eleições de novembro, ou para exercer qualquer função partidária. O fato é que o ministro Palocci, tenha culpa ou não, já é pesado obstáculo para a reeleição de Lula. Se o mantiver, o presidente estará oferecendo aos seus opositores um bom tema de campanha.

Os "governistas" do velho PMDB deixaram de comparecer ao encontro da Comissão Executiva, que iria adiar as consultas prévias, marcadas para domingo. Podem, se quiserem, tentar esvaziar a consulta e, na convenção extraordinária, marcada para abril, reverter a situação, mas isso é improvável. A roda já começou a mover-se, empurrada por Rigotto e Garotinho, com a ajuda de seus seguidores. E se o governador Geraldo Alckmin continuar dando declarações do teor das que deu à Folha de S. Paulo, ontem publicadas, corre o risco de assistir à apuração do pleito em terceira posição. É difícil encontrar, na realidade brasileira de hoje, alguém tão ultramontano quanto se revelou o governador de São Paulo. Em suas confidências ao psiquiatra do Tribunal de Nuremberg, Leon Goldensohn, o antigo chanceler von Papen disse que Hitler o enganara, a fim de obter o apoio dos católicos, dizendo-se partidário da doutrina social da Igreja tal como a expusera Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum. Esse cuidado não está tendo Alckmin: suas declarações fazem lembrar Pio IX, que condenava, ao mesmo tempo, o socialismo, o casamento civil, o livre pensamento e a política de bem-estar social dos trabalhadores, defendida, na Alemanha de seu tempo, por Bismarck.