Título: Senado confronta calote oficial
Autor: Daniel Pereira
Fonte: Jornal do Brasil, 20/03/2006, País, p. A5

O Poder Público promete pagar uma dívida histórica com parcela da população brasileira. Com desconto, de preferência, e sem definir um prazo para o acerto de contas. Apadrinhada pelos presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Nelson Jobim, e do Congresso, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), já está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado a proposta de emenda constitucional (PEC) destinada a incentivar estados e municípios a pagar uma dívida já vencida de R$ 61,5 bilhões em precatórios. Entre os credores figuram, por exemplo, trabalhadores, aposentados e pensionistas. São vítimas de ''calote oficial'', conforme expressão cunhada pelo ministro do STF Marco Aurélio de Mello, uma vez que precatórios são débitos decorrentes de decisões judiciais definitivas contra os governos federal, estadual e municipal. Nesse caso específico, como destacou Mello em julgamento sobre o assunto, não vale o dito ''devo, não nego, pago quando puder''. Considerada prioridade por Renan, a proposta estabelece que União, estados e Distrito Federal destinarão, no mínimo, 3% da despesa primária líquida do ano anterior para o pagamento de precatórios.

Segundo dados do STF, as unidades da federação devem R$ 41,6 bilhões em precatórios. Do total, R$ 12,2 bilhões são de responsabilidade de São Paulo e R$ 1,3 bilhão do Rio de Janeiro. Já a dívida dos municípios é de R$ 20 bilhões, sendo de R$ 10,8 bilhões da capital paulista e de R$ 303 milhões da capital fluminense. Pela proposta, os municípios terão de destinar, ao menos, 1,5% da despesa primária líquida para precatórios.

Renan e Jobim alegam que o sistema é o melhor possível, pois os entes da federação não têm como comprometer mais recursos para liquidar a fatura.

- Estados e municípios apresentam situação financeira difícil. Os estados apresentam uma média de comprometimento da receita corrente líquida de 85% (pessoal, saúde, educação e pagamento de dívidas). Ou seja, restam apenas 15% para outros gastos e investimentos - diz Renan.

Para angariar apoio dos governantes, a proposta prevê a realização de leilões para o pagamento de precatórios. A idéia é incentivar os credores a conceder descontos, como já fazem hoje no mercado paralelo, que viceja devido à inadimplência generalizada de estados e municípios. O próprio Jobim denunciou vendas de precatórios por até 20% do valor original por pessoas cansadas de esperar o recebimento da dívida. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) repudia o estímulo ao deságio.

- A um só tempo, a PEC viola a coisa julgada, o direito adquirido, a moralidade administrativa e a dignidade da pessoa humana - afirma o conselheiro federal da OAB, Vladimir Rossi Lourenço.

Pela proposta, 70% dos recursos para pagamento de precatórios serão reservados para os leilões. Os 30% restantes, para os precatórios que não se habilitarem nos pregões. Neste segundo caso, terão prioridade na hora do recebimento os precatórios de menor valor, independentemente da data de apresentação. Se os valores forem iguais, será dada preferência ao credor de precatório mais antigo. Para se beneficiar das regras da proposta, os entes da federação terão de aderir ao chamado regime especial de pagamento de precatórios.

No caso de adesão e de não liberação dos recursos nos moldes estabelecidos, a Justiça determinará o seqüestro dos valores necessários para o cumprimento das regras, e o governante responderá por crime de responsabilidade, passível de pena de cassação de mandato.