Título: Os partidos e a federação
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 08/03/2006, País, p. A2

O conflito a propósito das coligações partidárias é maior do que a divergência entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Trata-se da questão federativa. Não é por acaso que eminentes juristas de São Paulo - entre eles o presidente da OAB - defendem a verticalização com maior empenho. Ao defendê-la, defendem a continuação do poder, político e econômico, nas mãos de suas elites. Na legislação política devemos partir dos princípios que têm conduzido os homens e os Estados. O poder - e poder é liberdade - é atributo de cada ser humano. Iguais no nascimento, os homens recebem do Absoluto o mesmo legado de vontade e de decisão. Como diz Stuart Mill, liberdade é fazer uma escolha. Esse poder político pode ser concedido pelo homem, mediante o instituto de representação, ou usurpado pela força ou pela astúcia. É nessa resistência, contra os usurpadores, que se desenvolve a ação política. Para defender-se, os homens se reúnem e se organizam em partidos. Essa aglutinação é movida pelos interesses comuns e pelas idéias. A democracia consiste em respeitar, ao máximo, a vontade de cada um. O poder é assim alguma coisa que se amplia quando se cede: do homem para a comunidade mais próxima e das comunidades mais próximas para o Estado Nacional. A primeira instância coletiva do poder é a cidade. O poder da União é concedido, em uma cadeia de cessões, que começa no indivíduo, passa pelo município, do município para o estado, e do estado para o governo central. Assim deveria ser, mas não tem sido, porque, em lugar de exercer um poder derivado, que lhe é concedido, a União, por meio de seus burocratas, impõe, soberana, a vontade sobre os cidadãos e suas instituições regionais. Desequilibra-se a Federação quando uma unidade federada domina economicamente a União, e quando deixa de haver alternância das regiões na chefia do governo federal.

Outra violação ao Pacto Federativo ocorre quando os estados e municípios são impedidos de articular-se livremente, a fim de formar alianças e eleger os próprios governantes.

Quanto ao problema atual, com todo o respeito pelo Poder Judiciário, o senso comum reclama algumas reflexões. Mesmo sem ter sido promulgada, a emenda que permite a liberdade de coligação partidária já se encontra em vigor. Uma decisão legislativa que prescinde de sanção da chefia do Estado legitima-se no ato de sua aprovação. É esse o caso das emendas constitucionais. A promulgação é apenas o ato solene, o rito de celebração. Como o ministro Paulo Brossard expôs, com clareza absoluta, a Carta Política exige que "a lei" só entre em vigor no ano seguinte, mas a restrição não se aplica a uma emenda constitucional. Apesar de toda a latitude que se possa dar ao vocábulo "lei", lei pressupõe legislação ordinária. Se o legislador quisesse se referir a uma emenda constitucional (valha a velha lógica), teria explicitado sua vontade. A emenda "muda" a Constituição, e esse poder de mudar só é limitado pelas cláusulas pétreas. Uma das cláusulas pétreas que seria violada com a imposição da verticalização - e não com o seu fim - é exatamente a do Pacto Federativo.

Os partidos políticos exercem a sua atividade nos municípios, nos estados e na União. Formam-se os diretórios municipais e, com os seus delegados, os diretórios estaduais e nacionais. É uma organização de baixo para cima, não o contrário. Em cada eleição, os partidos se ampliam em coligações, nos municípios e nos estados, tendo em vista os interesses locais. Sua orientação é ditada pelas próprias circunstâncias nos municípios e nos estados. Obrigá-los a engessar-se em candidaturas presidenciais é confiscar-lhes a liberdade.

Quando a Constituição fala em caráter nacional, entendemos que nenhum partido pode ser filiado a entidade política estrangeira. Foi com o pretexto, sem fundamento, de que seria uma seção de partido estrangeiro, que o STF cassou o registro do Partido Comunista, em 1947. Se fôssemos admitir a interpretação que lhe querem dar hoje, o dispositivo avocado estaria consagrando, na Carta Política, a agressão ao pacto republicano de 1891, que o governo anterior levou além do impensável.