Título: Os paradoxos da globalização
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 11/03/2006, País, p. A2

Há os que defendem um governo universal: essa seria, de acordo com certos teóricos, a única forma de eliminar as guerras, de construir uma paz durável, se não eterna. Outros teóricos apontam a impossibilidade de governo universal sobre uma História construída nos fundamentos da desigualdade. A paz só pode ser obtida entre sociedades iguais, e as sociedades nunca serão iguais. Se houver a provável igualdade econômica, sempre haverá a desigualdade cultural, e, por fim, os deuses tampouco são iguais. Se Deus não fez os homens à sua imagem e semelhança, os homens fizeram os deuses de acordo com o seu próprio modelo. A insurreição de Lúcifer foi inspirada nas rebeliões humanas, e não as insurreições dos homens modeladas pela Grande Rebelião nos céus. Assim, a esperança de um governo mundial continuará, felizmente, uma utopia. Ao longo dos séculos, a política tem sido considerada, pelos economistas e pelos militares, fator de perturbação da paz e da ordem. Nos governos, e isso tem sido vezo histórico, os economistas pregam a austeridade, combatem a solidariedade para com os mais pobres, defendem a idéia de que o êxito é destinado aos mais dotados, pela natureza e pela posição social. Mas se um governo universal, com o consentimento de todos os seres humanos, parece utópico, o governo imperial é experiência histórica repetida e sofrida. Impérios, sempre os houve, da mesma forma que houve rebeliões dos dominados. Quase sempre, a Humanidade conseguiu impedir um império que fosse universal. Houve sempre duas potências maiores, em cada tempo, que disputaram a hegemonia, e isso permitiu às nações suportar, fosse pela esperança, fosse pela mútua contenção, a submissão permanente e completa a um ou outro centro de poder.

A globalização da economia, inventada, como disse Galbraith, para servir à hegemonia americana, fundamentou-se no mercado e desprezou os sentimentos nacionais dos povos a ela submetidos. E, do ponto de vista puramente econômico, rompeu regras antigas e aceitas nas relações internacionais. O que pretendiam que servisse a apenas um centro imperial, passou a estimular o aparecimento de novos rivais. Como o dinheiro (da mesma forma que os peixes) procura sempre o lugar mais confortável e seguro para reproduzir-se, a China se ergueu para lhe oferecer lugar seguro e promissor, mediante o sistema de parceria entre o capitalismo de Estado, majoritário, e os investidores estrangeiros. Se a globalização se mantiver, no mesmo ritmo e normas, dentro de poucos anos os Estados Unidos terão o seu poder econômico (e, com ele, o militar) reduzidos de forma dramática.

Assim se explica por que parlamentares do país que inventou a globalização reagiram com energia à possibilidade de que uma empresa estrangeira, controlada por xeiques islâmicos, venha a operar os seus portos. Segundo o consenso dos opositores, só os americanos podem operar seus portos, pois nenhuma empresa estrangeira teria sensibilidade para compreender a opinião e sentimentos do povo dos Estados Unidos. Ao fechar, no Congresso, o passo à Dubai Ports World, falaram na hipótese de terrorismo - e estão certos, se dermos a esse vocábulo a amplitude que tem: da mesma forma que nos aterrorizamos frente a um atentado, os ricos se aterrorizam diante da possibilidade do empobrecimento, e de diminuir o seu espaço de poder no mundo. O New York Times de ontem, em seu editorial, diz que os portos, mesmo sem a Dubai, estão inseguros, porque é fácil usá-los para introduzir artefatos explosivos no país. Mas há outras armas. Amanhã, os globalizadores podem transformar-se em globalizados, com a abertura de seu mercado aos estrangeiros. Além disso, o medo generalizado pode transformar-se no pânico, que enlouquece e paralisa os povos, como ocorreu em Cartago. É a velha dialética, reabilitada pela História, que não acabou, porque está sempre recomeçando. Mas, enquanto puder, nenhum império sucumbirá sem reagir com toda a violência a fim de preservar o poder. Para eles, todos os meios são válidos, na conquista ou manutenção do domínio sobre outros povos e os seus bens naturais. Uns reclamam o espaço vital, outros, a energia vital.

Podemos ver, em Guantánamo, as sombras de Auschwitz.