Título: "Nepotismo eleva o Custo Brasil"
Autor: Ismália Afonso
Fonte: Jornal do Brasil, 11/03/2006, Brasília, p. D4

Um pai deputado que emprega o filho no gabinete do colega de partido. Um juiz que nomeia esposas para cargos de confiança. Práticas como essas, bem conhecida pelos brasileiros, não se restringem à esfera pública. É o chamado nepotismo, palavra que deriva do italiano nipote, que significa sobrinho. Há pouco mais de um mês, o assunto ganhou novamente as páginas dos jornais. O Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que impede a contratação de parentes de magistrados, até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Judiciário. O Legislativo também já anunciou que tomará medidas para combater esse tipo de relação, que traz consigo uma série de conseqüências. A maior delas, segundo o professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), é o impacto disso no que chamamos de Custo Brasil. É preciso entender, diz ele, que o nepotismo (ou como ele chama patrimonialismo familista) é uma das principais, senão a principal, causas da baixa produtividade e da baixa rentabilidade da economia. Apesar disso, ele acredita que o tema não entrará nas campanhas eleitorais desse ano. ¿A tendência é o eleitor considerar o nepotismo um pecado venial. O problema é que, quando há abuso, esse se torna um pecado mortal¿, afirma. Chacon analisa aspectos históricos e atribuiu a naturalidade do brasileiro em relação ao assunto à estrutura patriarcal da nossa sociedade. Mesmo assim, o especialista acredita que, em mais uma ou duas gerações, a família deixe de ser o fator hegemônico da chegada ao poder. ¿Ela continuará existindo, mesmo nas sociedades mais modernas. Apenas terá seu papel diminuído¿.

- No mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a validade da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que impede a contratação de parentes de magistrados, até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Judiciário. A regra vem combater uma prática recorrente no país, o nepotismo. O senhor acredita que essa seja uma boa saída?

- O nepotismo é característico das sociedades e das economias pré-capitalistas, em que o público e o privado não se separaram. Dentro desse último, o que predomina é a forma mais simples de organização, a do parentesco. É claro que o nepotismo (ou familismo ou patrimonialismo familista) não existe só no Poder Judiciário. Existe no Executivo e no Legislativo federal, estaduais e municipais, e também nas próprias empresas privadas. Precisamos lembrar que as grandes empresas brasileiras são, em sua maioria, familiares. Mas, temos de começar a ultrapassar essa fase por algum lado. A oportunidade que nos foi dada historicamente foi pelo Judiciário, mas logo isso terá de ir ao Legislativo e ao Executivo. Não sei, porém, até que ponto é possível apressar a marcha da história.

- O deputado Aldo Rebelo anunciou que pretende colocar na pauta da Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional que acaba com o nepotismo nos três poderes. O que além dessas regras deve ser feito para mudar essa cultura?

- A opinião pública deveria pressionar o Legislativo e o Executivo nas próximas eleições. É necessário que haja burocracia de carreira, meritocrática. Isso é intrínseco ao Estado moderno. Temos de pressionar basicamente por meio de eleições e exigindo transparência da administração pública e privada. Quando for reunida a próxima legislatura, é preciso se criar uma lei, inicialmente federal, proibindo que o número de cargos de confiança ultrapasse um determinado índice, naturalmente inferior ao atual. Porém, não se pode impor aos representantes desses poderes que não tenham uma reserva mínima de cargos de confiança mais próxima.

- Com a entrada desse assunto na agenda pública, o senhor acredita que o tema possa ser abordado na campanha eleitoral desse ano? O eleitor valorizaria um candidato que se comprometesse a combater esse problema?

- Uma vez que se trata ainda de um resíduo cultural, lamentavelmente, esse tema vai pesar pouco nas eleições. Ao lado das realizações práticas, dos programas sociais, da multiplicação das escolas, estradas, obras públicas visíveis a olho nu, o familismo ainda pesará pouco. O cidadão quer, em última instância, saber se está sendo beneficiado por programas sociais ou por leis. A tendência é o eleitor considerar o nepotismo um pecado venial. O problema é que, quando há abuso, esse se torna um pecado mortal.

- Quais os principais problemas que o nepotismo traz para o Estado?

- As sociedades de capitalismo avançado, nas quais as relações familiares não são hegemônicas, são regidas pela competição. Quando não há competição, quem será o escolhido? Aquele mais próximo fisicamente dos detentores do poder. Assim, a produtividade cai por falta de competitividade. Esse sistema não tem futuro. Não porque o familismo seja totalmente eliminável, mas porque ele precisa deixar de ser hegemônico e majoritário. O que a sociedade brasileira tem de perceber é que o patrimonialismo é uma das principais, senão a principal, causa da baixa produtividade e da baixa rentabilidade da economia. E isso vai inevitavelmente impactar no que chamamos de alto custo Brasil.

- Que outras ações negativas, em geral, acompanham essa prática?

- O familismo como cabide de empregos é arcaico, anacrônico, antieconômico, improdutivo, um peso negativo na economia. É possível sentir esses males a partir dos serviços mal prestados pelo Estado, pelas empresas. Mas, na imensa maioria dos casos, a população não está suficientemente conscientizada a respeito. Isso em nenhum lugar do mundo, apesar de que, em alguns lugares, a repulsa ao familismo seja mais sensível. Na Europa, Japão ou Estados Unidos, por exemplo, é um perigo descender de pais poderosos, porque as pessoas são mais cobradas e expostas na vitrine da opinião pública.

- Já que a família não perderá totalmente seu poder, qual é a alternativa para estruturar melhor a sociedade?

- Só existe uma saída para acabar com o familismo: o desenvolvimento econômico. Fazer leis nesse sentido é até necessário e diminuirá consideravelmente o mal. Porém, não se poderá nunca, nem mesmo nas sociedades de capitalismo mais desenvolvido, erradicar por completo o familismo. A sociedade do futuro, que já começou a existir, é o que alguns cientistas políticos chamam de poliarquia (estrutura que permite a participação de todos os cidadãos e de diferentes maneiras). Nela, coexistem a democracia, a meritocracia e também a origem familiar. Essa terceira, claro, com menor importância. Nesse caso, o critério da ascensão ao poder não é só o democrático, mas também o meritocrático e a sorte. Afinal ela existe. Maquiavel distinguia esse como um dos elementos para o êxito do político.

- O primeiro registro histórico da prática de nepotismo no país é da primeira carta de Pero Vaz de Caminha a Dom Manuel. Depois de falar da então Ilha de Vera Cruz, pedia ao Rei que mandasse trazer da ilha de São Tomé seu genro Jorge de Osório. Que aspectos da cultura brasileira contribuíram para a perpetuação dessa prática?

- O que mais preocupa e até assusta é que o patriarcalismo que nos acompanhou ao longo da história não tenha sido substituído por uma família livre e aberta. Precisamos considerar também o conceito de tempo, que varia entre as sociedades. As patriarcais e patrimonialistas são muito lentas, de um tempo histórico muito devagar. Mas, eu calculo que esse fenômeno não dure como fator hegemônico mais do que uma ou duas gerações. Isso não significa que a importância da família desaparecerá, vai apenas diminuir consideravelmente. Ela existirá ao lado da empresa, do sindicato, do partido político e de outras estruturas.

-Que experiências adotadas no Brasil foram importantes para diminuir o nepotismo?

- Quem primeiro tentou combater o nepotismo no Brasil como política pública foi o presidente Getúlio Vargas. Ele criou o Departamento de Administração do Serviço Público (Dasp), que tinha status de ministério. Era o Dasp que administrava todas as nomeações e promoções. Depois da Revolução de 1930, Vargas, pouco a pouco, foi generalizando concursos a todas as áreas do serviço público. Foi o presidente Vargas que instaurou essa prática no Brasil que, até então, só existia nas Forças Armadas e no Itamaraty. Com exceção dessas duas carreiras, todas as outras eram ocupadas por nomeação. Mais recentemente, temos a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e a Escola Superior de Administração Fazendária (Esaf), além do Instituto Rio Branco e da Escola Superior das Forças Armadas, esses dois últimos criados pelo próprio Vargas.

- É possível estabelecer um paralelo entre o Brasil e algum outro país a respeito desse assunto?

- Se olharmos para a América Latina, embora alguns brasileiros não saibam e pensem sempre no pior para nós, o Brasil é o país, do México até o Chile e a Argentina, com maior número de burocracia de carreira. A quase totalidade dos serviços diplomáticos dos países latino-americanos não tem concurso público. Daí por que o Itamaraty ser conhecido na região e mesmo fora dela como um corpo de elite da política externa mundial. A África segue a mesma estrutura. Com exceção da África do Sul, em nenhum país do continente, existe diplomacia de carreira. No Oriente, com exceção da Índia, do Japão e da China, também não têm diplomacia de carreira. Uma outra coisa é que, em países em desenvolvimento, não há nada igual ou parecido com a Fundação Getúlio Vargas. Criada ao lado do Dasp, treinava e reciclava o funcionalismo público brasileiro. Um importante índice é a quantidade e a qualidade de ministros de Estado que saiu da instituição.