Título: Perversidade financeira
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 12/03/2006, Opinião, p. A10

A insensatez mais uma vez prevaleceu, e o Banco Central tomou outra decisão capaz de atrapalhar a economia brasileira. Se o Comitê de Política Monetária (Copom) mantiver o comportamento conservador na hora de definir os juros básicos, a Selic (reduzindo-a moderadamente a cada reunião), o Brasil terminará 2006 com a inacreditável taxa de 16% ao ano. Basta manter o corte de 0,75 ponto em cada encontro, agora realizado a cada dois meses. O ritmo resulta de uma overdose de austeridade monetária. Um erro monumental. Um gesto de suposta independência do Banco Central, mas inadequado do ponto de vista social e econômico. Aos integrantes do Copom cabe a tarefa de zelar pela moeda, barrando eventuais fantasmas inflacionários. Não é o caso da situação atual da economia brasileira. O BC tem enxergado riscos aparentemente inexistentes. Foi-se o tempo, afinal, em que somente as cassandras habituais espantavam-se com a política monetária. As sucessivas janelas de oportunidade perdidas pelos integrantes do Copom estimularam o incômodo que se generaliza cada vez mais pela equipe econômica do governo. Como afirmou o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, os diretores do Banco Central podem ter confundido independência com soberba.

Com tal equívoco, tem-se turvado as tentativas de maior crescimento. O próprio secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, uma das vozes mais qualificadas do governo, vem apontando a evidente contradição entre a curva da taxa de juros de médio prazo (incluindo as expectativas para este ano) e a constelação de variáveis macroeconômicas identificadas hoje no país. Os próprios relatórios do Banco Central confirmam números positivos. Prevê-se inflação de 4,5%. As contas correntes permanecerão no azul. O superávit primário esperado é o da meta de 4,25% do Produto Interno Bruto. O crescimento econômico deverá ser superior a 3,5% - modesto, mas possivelmente melhor do que o raquítico resultado de 2005.

A essa desarmonia entre os indicadores e as decisões do Copom, convém acrescentar outro - igualmente perturbador. Tão inabalável quanto o conservadorismo do BC é a lógica financeira que tem perpetuado os ganhos dos bancos brasileiros. Basta ver os resultados espantosos obtidos pelas instituições financeiras: Na corrida pelos lucros, os bancos têm batidos sucessivos recordes. Esse crescimento não se traduziu, por exemplo, em maior arrecadação federal. Enquanto os ganhos avançaram, em média, 40% em 2005, atingindo R$ 21 bilhões, o pagamento de Imposto de Renda pelas instituições financeiras evoluiu 9,9% no período - contra uma carga 11,7% maior para pessoas físicas e 22,4% para empresas não-financeiras. O alívio fiscal se deve a uma série de artifícios legais que permitem a redução da base de cálculo de tributos, conforme demonstrou reportagem de Samantha Lima, no JB do último domingo.

Em contrapartida, o consumidor padece com a cobrança de taxas situadas em patamares insustentáveis. A taxa média cobrada por bancos, financeiras e lojas está hoje em impressionantes 140% ao ano. A distância entre a Selic e as taxas da vida real reafirma que há algo errado. Uma das propriedades do mercado brasileiro é oferecer liberdade para que os bancos decidam quanto cobrarão sobre cada tarifa - até decidir quais serão as tarifas existentes. Não foi à toa que um dirigente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças uma vez resumiu tamanha rentabilidade: ''A melhor coisa do mundo é um banco bem administrado. A segunda melhor do mundo é um banco mais ou menos administrado. E a terceira melhor coisa do mundo é um banco mal administrado''.

Exageros retóricos à parte, o Brasil precisa rediscutir a perversidade financeira que vem subjugando cidadãos de bem. As decisões do Copom poderiam constituir o primeiro passo. Liberdade é bem-vinda e necessária a qualquer país de economia de mercado e competitiva. Mas normas reguladoras e bom senso são igualmente relevantes. Sem isso, Brasil continuará amargar resultados esquálidos na economia e números vistosos no paraíso do mundo financeiro.