Título: 'Nascer mulher faz a diferença'
Autor: Luciana Navarro
Fonte: Jornal do Brasil, 12/03/2006, Brasília, p. D3

Guacira César de Oliveira dedica a vida à luta pelo direito das mulheres. O primeiro contato dela com o feminismo foi no movimento estudantil no início da década de 1980. Nessa época, cursava Sociologia na Universidade de Brasília (UnB). Segundo ela, o movimento estudantil era masculinizado e, aos poucos, começou a tratar de temas como a liberdade sexual. Cada vez mais as mulheres foram ganhando apoio dentro do movimento. Desde então, a busca por respeito às mulheres não cessou. Na Constituinte, Guacira trabalhou no Conselho Nacional de Direitos da Mulher, primeira organização que tratou do tema na América Latina. Participou da elaboração da carta das mulheres aos constituintes. Foi então que conheceu mulheres de todas as partes do país engajadas no movimento feminista.

Quando deixou o Conselho Nacional de Direitos da Mulher sentiu a necessidade de organizar o movimento feminista. Fundou o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). A Organização Não-governamental (ONG), participa do movimento nacional de mulheres. Está presente em lutas pela legalização do aborto, por melhores políticas de proteção à mulher, entre outras questões ainda distantes da solução.

- Quais são os principais problemas enfrentados pela mulher?

- Em primeiro lugar, não tem uma mulher só. São muitas mulheres. Os problemas enfrentados pelas mulheres são muito diferentes dependendo do lugar onde ela está, da raça que ela tem, da orientação sexual. Enfim, isso tudo modifica os problemas que ela vive. Ser mulher indígena é uma coisa e ser mulher branca é outra coisa completamente diferente.

- Mas, de qualquer forma, a mulher, em geral, sofre discriminações.

- Exatamente. Nascer mulher faz a diferença e faz a desigualdade em todos os lugares - mulher negra, homem negro, mulher branca, homem branco, mulher indígena, homem indígena. Ser mulher faz a diferença e é a razão de desigualdade no País. Uma questão fundamental para a grande maioria das mulheres hoje é o poder. Não falo só do poder de Estado, do poder da política formal, mas do poder de uma maneira geral. Da capacidade de decidir sobre a sua própria vida, o poder de decidir sobre a vida da sua família, sobre a vida da sua comunidade, de participar dessas decisões.

- A que a senhora atribui essas dificuldades?

- Isso tem a ver diretamente com o fato de que estamos numa sociedade patriarcal na qual existe uma divisão de trabalho. As mulheres, quando decidiram ir ao mercado de trabalho, buscar sua autonomia, ter mais poder de decisão, assumiram uma dupla jornada de trabalho. Isso faz com que a possibilidade de a mulher participar seja também mais reduzida do que a dos homens.

- Os partidos políticos devem reservar 30% das vagas para as mulheres. Mas a participação feminina na politica não tem essa representação.

- Os partidos deveriam ter, dentro dos partidos, políticas próprias para que as mulheres pudessem ocupar espaços de poder dentro das legendas. Os partidos têm que ter uma política afirmativa dentro da legenda, para as mulheres crescerem como liderança ali dentro. E aí, voltando atrás, na nossa história, se não houver essa mudança dentro da vida familiar, também vai ser difícil para a mulher. Se você as mulheres que estão no poder, vai ver que grande parte delas é divorciada, separada. E se você olhar os homens, a grande maioria deles são casados.

- Então para a mulher assumir um cargo desses ela tem, geralmente, que abrir mão de uma vida pesoal.

- Tem que abrir mão de uma vida pessoal e muitas vezes tem que abrir mão pelo menos do seu casamento, porque os casamentos não a notabilidade da mulher na vida pública maior do que a do homem. Então o casamento vai embora.

- A senhora disse que vivemos numa sociedade patriarcal. Recebemos uma educação em que a mulher está subordinada ao homem. O que a senhora sugere como mudança prática na educação do País capaz de mudar esse quadro?

- Acho que algumas medidas já vêm sendo tomadas nesse sentido. O livro didático atual tem um cuidado maior quanto ao tema. Isso não quer dizer que o problema vá se resolver, mas que há um caminho por aí. Acho que a outra questão fundamental é a ação dos professores e das professoras. A forma como se formam os professores tem que visar à igualdade. Ela tem que ser construtora e isso não é algo que acontece de um dia pro outro.

- Então a senhora acha que é preciso investir em formação?

- Precisa de formação dos professores nesse sentido. Na verdade, é preciso uma transformação da própria sociedade, porque se a professora vive num ambiente familiar que não valoriza o papel da mulher, se ela acha que o lugar da mulher é outro, que não o da igualdade com os homens, ela também vai reproduzir isso.

- Quais são os primeiros passos a serem dados para a solução do problema da violência doméstica?

- Em vida de marido e mulher se mete a colher. Acho que essa é a primeira coisa que tem que mudar, porque as pessoas têm que ver que aquele não é um problema do casal que se resolve entre quatro paredes, é um problema social. Nesse sentido, o poder público tem o dever de garantir a segurança das mulheres, dar proteção para as mulheres contra a violência doméstica. E hoje a estrutura do poder público ainda está muito aquém do desejado. Na verdade o poder público atua também como um agente de violência contra a mulher.

- Em que sentido?

- No sentido de que uma mulher chega numa delegacia de política para fazer uma queixa e a queixa dela às vezes é aceita com muita dificuldade. O policial não quer registrar a ocorrência porque acha que aquilo não é necessário. Depois, quando ela chega na Justiça o preconceito persiste. O poder público termina sendo um segundo agente de violência contra a mulher.

- O que é preciso fazer para começar a mudar isso?

- Precisa haver pressão política. Isso não se transforma sem mobilização, sem pressão das mulheres. Não é uma falta de conhecimento. Temos que ter uma mobilização social. Havendo disposição, vamos formar os policiais, os juízes. Vamos criar equipamentos que dêem conta de proteger a mulher, casas de abrigo para mulheres em situação de extrema de violência. Teremos uma legislação que permita que a mulher não fique abrigada nas casas de abrigo que hoje existem, na verdade, presas, enquanto o agressor está em liberdade. Precisamos de um sistema funcionando para combater a violência contra a mulher. Um sistema que chega na saúde, na delegacia de polícia, na defensoria pública e na Justiça.

- No Distrito Federal, quais são os principais problemas para que esse tipo ação seja colocada em prática? O que precisa ser feito?

- Um problema fundamental aqui é a falta de prestação de contas do governo do Distrito Federal sobre a situação das mulheres. É uma ausência absoluta. E pode não estar fazendo várias coisas, mas mesmo do que está fazendo, não se sabe, não se tem conhecimento. O acesso às informações é muito difícil. Em 2004, o que se tirou foi uma proposta para um plano de políticas públicas para as mulheres no Distrito Federal. Um plano que dizia respeito à questão da violência contra a mulher, a um apoderamento das mulheres, à autonomia econômica das mulheres, à educação. Era um leque enorme de questões que estavam colocadas, que foram consenso, que foram discutidas, uma a uma, votadas, aprovadas, por uma conferência em que 50% era governo e 50% era sociedade civil. Foi um longo processo de discussão. Eles prometeram que iam fazer. Falaram em construir um centro de atendimento integrado na área de violência.

- Nada disso foi feito?

- Nem a primeira parte, que era dizer: nós vamos fazer isso.

- Esta semana o movimento em defesa da mulheres se reuniu com a vice-governadora, Maria de Lourdes Abadia. Qual a sua avaliação do encontro?

- Para mim o que ficou muito claro na audiência é que o governo não tem uma política pública para as mulheres. O governo tem uma série de políticas sociais onde, no meu entendimento, as mulheres são usadas como engrenagem. Dentro dessa lógica do Estado, as mulheres fazem o ''serviço social'' de baixo custo. Elas são usadas para o trabalho comunitário e se encarregam de uma parte do serviço público. Você cria um serviço para cuidar de crianças com alguma mulher, com um preço barato, e exime o Estado de ter a creche pública que devia ter. Você encarrega a mulher de cuidar para que o seu filho vá todos os dias à escola e que tenha uma nutrição correta, e obriga a mulher a receber um determinado benefício por fazer isso, quando é o Estado que deveria estar fazendo esse papel, garantindo, sabendo se a criança está bem nutrida, garantindo que a criança vá a escola, sabendo porque ela não foi, se a mãe está trabalhando e não tem com quem deixar o filho. Mas quem tem que dar conta disso tudo são as mulheres. Então, uma coisa é você ter programas sociais onde as mulheres são a engrenagem fundamental desses próprios programas que são para as famílias e não necessariamente para o apoderamento das mulheres. Outra coisa é você ter uma política para o apoderamento das mulheres, uma política que valoriza a mulher, uma política que garanta autonomia. Um programa que depende que as mulheres sejam pobres e continuem pobres.

- Do jeito que as coisas andam, quanto tempo a senhora acha que demora?

- É difícil. O caminho é muito longo. É uma construção que você tem que fazer. Hoje a gente tem algumas pessoas realmente comprometidas. No DF, a gente tem um Fórum de Mulheres do Distrito Federal. Tem algumas mulheres na Câmara Legislativa, certamente algumas mulheres no governo que têm um compromisso maior com a questão da mulher. Mas para isso chegar dentro da máquina é muito complicado. Fazendo um paralelo com o governo federal, vemos que ele criou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Foi uma decisão política. Mostra que existem forças políticas dentro do governo que acham que deve ter um grupo responsável pelas políticas para as mulheres. Mesmo assim, essa secretaria tem enormes dificuldades para dialogar com o restante do governo. Quando o governo federal aprovou o Plano Plurianual, o PPA, colocar que a desigualdade de gênero era um dos 23 desafios nacionais, foi algo que veio do movimento de mulheres.

- Falta diálogo?

- Não há um diálogo entre o governo e a sociedade. As mobilizações, os movimentos chegam estourando portas, porque não têm abertura de governo. Você gasta horas da sua vida, as mulheres vêm lá do fim do mundo, sentam o dia inteiro para discutir com o governo e um ano e meio depois não dá nenhuma satisfação?

- É como se as discussões não servissem para nada.

- O que você faz? Vai brigar, conversar de novo? Essa lenga-lenga. Nos convidam para ir aqui, para ir ali, e você fala, fala, fala ...

- É como se falasse para nada?

- Exato. Não dá. Não basta informar, tem que ter espaço da participação.