Título: O começo da vida
Autor: Nilcéa Freire
Fonte: Jornal do Brasil, 25/11/2004, Outras Opiniões, p. A11

Maria, uma Maria qualquer, no oitavo mês de gravidez foi encontrada presa ao galho de um arbusto, em uma vala a céu aberto. Hematomas por todo o corpo, principalmente na região da barriga, tinha como última lembrança o marido arrastando-a àquele local, após mais uma sessão de espancamento. Quis o destino que ela sobrevivesse e desse a luz a seu filho. Hoje, Maria tenta recomeçar a vida em morada protegida, longe de seu agressor. Esta é uma história, como muitas outras, de uma mulher que sobreviveu à violência perpetrada pelo marido, com quem partilhou um projeto de vida. Dar um final feliz a essas histórias não depende apenas de um ato de vontade. Elas não precisam apenas de nossa solidariedade e, muito menos, de um olhar piedoso. Elas necessitam de ações e medidas concretas do Estado, dos governos e da sociedade que coíbam a violência doméstica contra a mulher.

Este 25 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres, é, também, um momento para prestar contas. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), da Presidência da República, desde a sua criação em 2003, tem dado especial atenção à formulação e implementação de uma política nacional de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher. Nesse combate, três dimensões são consideradas: o apoio financeiro e técnico aos serviços de atenção às mulheres em situação de violência ou risco iminente de vida; a capacitação e qualificação de profissionais que atuam nos serviços; e a ampliação e melhoria dos instrumentos de acesso à Justiça. A eficácia dessas ações depende do esforço combinado de todas as esferas e instâncias de poder e do envolvimento de toda a sociedade de forma a constituir verdadeiras redes de cidadania.

Este ano, a SPM apoiou 80 projetos encaminhados por governos estaduais e municipais, universidades e ONGs, visando à reestruturação, aparelhamento e implantação de serviços, bem como programas de capacitação e sensibilização na temática da violência de gênero. Atuamos em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, na capacitação e reaparelhamento de 50 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, cujos equipamentos começam a ser entregues neste 25 de novembro. O Ministério da Saúde já regulamentou a notificação compulsória para os casos de violência contra mulheres e divulgará nova norma técnica para o abortamento em casos de violência sexual. No âmbito da legislação e da justiça, foi elaborado anteprojeto de lei que reúne medidas que tratam da prevenção, proteção e punição à violência doméstica contra as mulheres, subsidiado por trabalho de um consórcio de oito organizações feministas, de grande competência na área. Participaram, também, oito ministérios, representantes de diferentes instâncias do judiciário e das Comissões do Ano da Mulher na Câmara e no Senado. Nesta semana o anteprojeto está sendo encaminhado à Câmara Federal.

Estamos avançando? Sim, mas há ainda muito trabalho pela frente. A violência doméstica é democrática, não escolhe classe social, cor, credo ou orientação sexual. Romper com o ciclo da violência é mais difícil para mulheres com baixa ou nenhuma autonomia econômica. Portanto, é fundamental direcionarmos esforços, também neste sentido, através de programas de geração de emprego e renda, acesso ao crédito e à terra, à moradia e à educação e através de campanhas que alterem a lógica e o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres, no enfrentamento à violência de gênero.

Toda mulher tem direito a uma vida sem violência. Mais do que um direito, esta é uma das condições para construirmos um país que seja realmente de todos e de todas.