Título: A ditadura na visão dos perdedores
Autor: Rodrigo Camarão
Fonte: Jornal do Brasil, 02/04/2006, País, p. A6

O general Ernesto Geisel estava sentado à cabeceira da mesa de despachos, na frente de um quadro do imperador dom Pedro I, quando o ministro do Exército, Sylvio Frota, cruzou a porta. Nos cinco minutos seguintes, confrontaram-se o projeto de abertura política e o radicalismo, o presidente e o futuro candidato. Direto, Geisel reclamou que os dois não conseguiam se acertar. Pediu a demissão do ministro. Mas naquela data, Dia das Crianças, Sylvio Frota passou à História como quem não estava para brincadeiras. - Não vejo razão para demitir-me porque não me julgo incompatibilizado com o cargo.

Elevada subitamente, a voz de Geisel cortou o ar como um castigo para a insolência do subordinado:

- Mas o cargo é meu.

- Por isso, cabe ao senhor demitir-me, pois não pedi para ocupá-lo...

O diálogo selou a exoneração de Sylvio Frota nesse dia, 12 de outubro de 1977, e, com ela, o desfecho da mais grave crise do regime militar, que atravessara o período dos anos de chumbo para desaguar na abertura lenta, gradual e segura. O general havia ascendido ao Ministério do Exército em 1974 por acaso, com a morte do titular general Dale Coutinho. Como personificação da linha dura do regime, ganhou status de potencial substituto de Geisel e árduo crítico de João Baptista Figueiredo.

Pela primeira vez e com a força de um documento histórico, Frota apresenta sua versão sobre este e outros fatos em Ideais traídos, recém-publicado pela Jorge Zahar Editora às vésperas do aniversário de 42 anos do golpe. O livro foi escrito no calor dos acontecimentos, lembram Celso Castro e Maria Celina D'Araújo no prefácio, e impresso 10 anos depois da morte do autor, em 23 de dezembro de 1996. Para Frota, a linha legalista do regime impelia o golpe para a desmoralização.

Nos anos 1978-80, Frota colocou no papel, a lápis, impressões sobre o regime. Eram em média sete páginas a cada semana, em papel não pautado mas com linhas tão retas quanto a disciplina militar.

O estilo do texto pouco lembra a sisudez típica dos memorandos do Exército. Talvez seja reflexo das influências vindas da leitura de André Maurois, Thomas Carlyle, Raymond Aron, este um notório combatente do marxismo. Na estante de quase 2 mil livros que ocupa uma parede do apartamento de 126 metros quadrados no Grajaú, onde foi escrito o ''livro do Frota'', há espaço privilegiado para biografias do personagem preferido: Napoleão.

Frota derramou sobre as três centenas de folhas manuscritas - que se transformaram em 662 páginas, somados os anexos - mágoas guardadas da traição de subordinados diletos, cujas almas seriam nefastas até para o diabo em pessoa:

''Nunca coloquei em dúvida que o grupo do Planalto fosse integrado por homens inteligentes, porém sem escrúpulos. Venderiam até as almas, se o diabo caísse na asneira de comprá-las''.

- Ele escreveu para a História - resume o filho do ex-ministro, contra-almirante da reserva Luiz Pragana da Frota.