Título: A face cristã do marxismo
Autor: Wojciech Kosc
Fonte: Jornal do Brasil, 02/04/2006, Internacional, p. A26

Há um ano, em 2 de abril de 2005, todas as pessoas que lotavam uma igreja em Wadowice, uma pequena cidade a uma hora de carro de Cracóvia, caíram de joelhos em um silêncio só interrompido por soluços. Acabavam de receber a notícia que, apesar de saberem ser inevitável, ainda rezavam para que nunca tivessem de encarar: o papa João Paulo II, Karol Wojtyla, morrera. O povo de Wadowice não disse adeus apenas ao papa. Mas também a um grande amigo: Wojtyla nasceu em Wadowice.

Hoje, no primeiro aniversário de sua morte, os sinos vão soar nas igrejas polonesas, às 21h37, hora em que morreu. Também haverá debates acadêmicos sobre o legado de João Paulo II, o que ainda gera discussões acaloradas, especialmente quando alguns pontos de vista menos ortodoxos vêm à tona.

Uma das maiores controvérsias desde que o primeiro papa polonês pisou pela primeira vez de volta à sua terra natal, em 1979, se dá em torno do quanto sua nomeação para a Santa Sé ajudou, no início, a oposição ao comunismo e, 20 anos depois, o processo que derrubou o regime de uma só vez no Leste Europeu e na Europa Central.

O fato de Wojtyla - um cardeal ativo e influente de Cracóvia que a polícia secreta sempre vigiou - ter se transformado em papa resultou num choque extremo para as autoridades comunistas da Polônia. Um choque que acabou levando-os a uma interpretação não muito exata do resultado do conclave.

- É melhor ter Wojtyla (como papa) no Vaticano do que (como chefe da Igreja) em Varsóvia - disse um líder do Politburo.

O papa, no entanto, iria rapidamente aparecer em Varsóvia, confirmando as palavras de um outro líder comunista, Edward Gierek, ao saber que Wojtyla havia sido escolhido:

- É uma grande honra para a Polônia. Mas também significa grandes complicações para nós.

Na primeira visita do pontífice a seu país, aqueles que testemunharam agora quase unanimamente argumentam que foi um momento catalizador.

- Ele aglutinou a sociedade fragmentada que éramos na época. - diz Stefan Wilkanowicz, jornalista católico, amigo de João Paulo II.

O ex-presidente polonês Lech Walesa, quando lhe perguntaram que líderes mundiais mais contribuíram para o colapso do comunismo, respondeu:

- O papa, com 50,1%; Lech Walesa, com 30%; e Boris Yeltsin com o resto.

De acordo com Jonathan Luxmoore, correspondente britânico em Varsóvia, especializado na Igreja Católica, talvez não deva ser atribuído a João Paulo II tanto crédito pelas revoluções que varreram o Leste Europeu e a Europa Central em 1989 e 1990. Mas concorda que desempenhou um papel importante.

O jornalista acrescenta que o papel de João Paulo II é difícil de ser medido, uma vez que foi uma influência de caráter cultural, espiritual e psicológico:

Luxmoore diz, ainda, que o legado do falecido papa não é tão óbvio quanto costuma-se pensar na Polônia. Ele argumenta que a visão de João Paulo II que tem prevalecido em sua terra natal está na biografia escrita por George Weigel, Witness to Hope (Testemunha da Esperança)

- O livro claramente apresenta Wojtyla como um homem devotado por toda a vida ao capitalismo liberal dos Estados Unidos - diz Luxmoore, que, com Jolanta Babiuch, escreveu um artigo no qual questiona essa visão.

O texto foi publicado em janeiro no jornal católico britânico The Tablet, com o título ''A dívida de João Paulo com o Marxismo'', feito pelos editores, Luxmoore faz questão de informar. Causou alvoroço na Polônia.

''O falecido papa é sempre apresentado como um inimigo da extrema esquerda, mas um antigo texto seu nunca publicado, A Ética Social Católica, revela que ele rejeitava a ideologia que dominava sua Polônia com menos intensidade do que tem sido sugerido'' - inicia o artigo, que, afirma, ainda:

''A Ética Social Católica nunca foi publicado e não está disponível em bibliotecas na Polônia. Mas lança uma luz sobre a formação de João Paulo II e questiona sua imagem anticomunista''

A idéia do artigo é mostrar que Wojtyla ''conseguiu anular o apelo ideológico do marxismo para dar a esses conceitos um significado cristão, além de resgatar as idéias de justiça social das quais o marxismo se apropriou''.

- Temos nos preocupado em desafiar a imagem de Karol Wojtyla-João Paulo II que está na biografia de Weigel. Não porque temos alguma simpatia pelo marxismo, mas porque acreditamos que o papa era uma personalidade muito mais rica. E que a posição da Igreja Católica não deveria ser identificada com qualquer linha política ou ideológica. - explica Luxmoore.

O jornalista acrescenta, ainda, que a versão de Weigel é geralmente aceita na Polônia como definitiva em parte porque há uma espécie de ''alergia'' contra qualquer sugestão de que Wojtyla tenha encontrado alguma empatia com o marxismo. Na verdade, considerando que o artigo de Luxmoore e Babiuch causou tanta polêmica, essa idéia parece inaceitável no país.

Para Luxmoore, a ''alergia'' a reunir as palavras Wojtyla e marxismo é um sintoma claro de que a discussão sobre o legado de Wojtyla na Polônia está longe de ser objetiva.

Wojciech Kosc, jornalista polonês, escreve para o Transitions on Line, site de notícias do Leste Europeu e Europa Central