Título: Democracia e ditadura no Brasil
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 02/04/2006, Outras Opiniões, p. A11

O Brasil era um país democrático, elegia seus presidentes a cada cinco anos, durante quase 20 anos, desde que a democracia havia sido instalada no país. Havia uma multiplicidade de órgãos de imprensa - jornais, revistas, rádios, televisões -, que se expressavam sem limites. Os brasileiros podiam se organizar na forma que decidissem - sindicatos, movimentos sociais, organizações empresariais de pequenos e médios empresários, centros culturais. Havia discussão publica sobre os destinos do país, com as mais distintas opiniões sendo expressas amplamente.

As Forças Armadas se ocupavam de suas funções profissionais, a Justiça funcionava de forma independente, mesmo com todas suas precariedades, o narcotráfico era quase inexistente. Os morros e as favelas eram lugares de vida e circulação normal das pessoas. O povo se organizava cada vez mais, reivindicava seus direitos, até mesmo a baixa oficialidade das Forças Armadas - marinheiros, cabos, soldados - conquistavam o direito de se associar e eleger representantes.

A vida universitária era intensa, com destaque para grandes nomes da intelectualidade brasileira. A música - especialmente através da Bossa Nova -, o cinema - com o Cinema Novo -, o futebol - com a Copa do Mundo na Suécia -, a literatura - com Guimarães Rosa, Drummond, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Vinicius de Morais, entre tantos -, o teatro - com o Teatro de Arena, o Oficina, o Opinião - eram mais criativos que nunca.

O Brasil não era uma sociedade justa, mas avançava nessa direção. O desenvolvimento econômico era um objetivo nacional, acompanhado de políticas de distribuição de renda. Começava um processo de reforma agrária, de reforma educacional, que iniciava um movimento de expansão da rede pública de ensino. O Brasil punha em prática uma política externa independente.

De repente, justamente pelos avanços que o país vivia, um movimento golpista, em que participaram o governo dos EUA - conforme documentos do Senado brasileiro -, o grande empresariado nacional e internacional, as Forças Armadas, grande parte da mídia, a Igreja Católica, a maioria dos principais partidos políticos, assumiu o poder do Estado pela violência e instaurou uma ditadura militar. Existia democracia, mas se acusava que o país caminharia para uma ditadura. Existia liberdade de expressão, mas se anunciava que se preparariam atos de liquidação da ''liberdade de imprensa''. Em suma, supostamente para evitar uma ditadura, instalou-se a pior ditadura que o Brasil já viveu. Destruiu-se tudo o que representasse democracia.

Entre suas primeiras medidas, para não deixar dúvidas sobre seu caráter, estiveram a intervenção em todos os sindicatos, a repressão sobre os dirigentes dessas entidades, o arrocho salarial, a abertura ao capital estrangeiro, a censura à imprensa, a ruptura de relações com Cuba.

O então ministro de relações exteriores, Juracy Magalhães, proferiu uma das mais célebres frases do Festival de Besteira que Assola o País (Febeapá), de Stanislaw Ponte Preta, o cronista da época: ''O que é bom para os EUA, é bom para o Brasil''.

O modelo econômico sofreu a virada mais concentradora de renda que o país tinha conhecido - centrando-se no consumo de luxo e na exportação. Governos fundados no arrocho salarial dão idéia do menosprezo do mercado interno de consumo de massas, fomentando a concentração de renda nos estratos altos do mercado, responsáveis por proporção crescente do consumo.

A violência e o terror foram mobilizados a serviço do aumento dos lucros das grandes empresas nacionais e estrangeiras. O desenvolvimento econômico teve amputado sua dimensão de distribuição de renda. A alta oficialidade das Forças Armadas aceitou a função de gendarme interno contra o povo e a favor das grandes corporações. A tortura, o seqüestro, as prisões arbitrárias se generalizaram, ao mesmo tempo que se multiplicavam os lucros das grandes empresas. A censura à mídia e às atividades culturais e educacionais foi transformada em regra geral. O Estado de Direito desapareceu, no bojo da ''doutrina da segurança nacional'', enquanto o Serviço Nacional de Informação (SNI) se constituía nos olhos e ouvidos da ditadura.

Esta semana completaram-se 41 anos do golpe militar de 1964. O Brasil nunca mais foi o mesmo. Nenhum dos responsáveis por esse regime monstruoso foi punido. Dificilmente um país que não acerta contas com seu passado pode olhar de frente para seu presente.