Título: Mais Constituição, menos violência :: Dalmo de Abreu Dallari
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/03/2006, Outras Opiniões, p. A11

A violência tem sido tema freqüente na imprensa. Informações divulgadas com grande estardalhaço, relatando a prática de violências e, freqüentemente, ilustrando a matéria com imagens impressionantes, disseminam o medo e provocam reações indignadas contra organizações e movimentos apontados como os responsáveis por essa violência. O que não se tem visto é o registro das circunstâncias geradoras dos conflitos e das causas de sua reiteração. Se isso for feito com imparcialidade ficará evidente que as verdadeiras causas e as reais violências estão na sonegação e na afronta de direitos consagrados na Constituição, o que leva à conclusão óbvia de que se a Constituição for respeitada e se suas determinações forem cumpridas cessarão as violências.

Tomando-se por base o Movimento dos Sem Terra, o MST, que vem sendo protagonista de reiterados conflitos, e analisando o conjunto dos fatores que têm suscitado tais conflitos, o que se verifica é que a verdadeira violência não está nas reivindicações mas na sonegação de direitos e na omissão das autoridades, que por temor de enfrentar interesses poderosos ou por simples conveniência política não cumprem obrigações expressamente previstas na Constituição. Com efeito, o que levou à formação do MST e estimula sua continuação e suas ações é a resistência dos governos em realizar a reforma agrária. Não se pode perder de vista que a reforma agrária foi prevista na Constituição porque a maioria dos constituintes tinha conhecimento de que é imensa a extensão de terras ociosas no Brasil. A par disso, eles tinham consciência de que a reforma agrária iria contribuir para a realização de um dos objetivos fundamentais da República, que é a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Assim se poderia tornar efetivo, para muitos brasileiros, um dos princípios da República Federativa do Brasil, que é a dignidade da pessoa humana.

Para que se perceba desde logo a importância atribuída à reforma agrária basta lembrar que ela é objeto de um capítulo especial da Constituição, no qual está inserido o artigo 184 dispondo que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. Qualquer pessoa que tenha viajado recentemente pelo Brasil sabe que há extensões imensas, que não produzem o que poderiam produzir, mantidas pelos seus proprietários como reservas econômicas. A ambição e o egoísmo prevalecem sobre a solidariedade e o espírito público, pois os grandes latifundiários não se contentam com a indenizição prévia e justa, determinada pela Constituição no já referido artigo 184, mas estão sempre na expectativa de obter mais. A condição de grande proprietário rural é freqüentemente ligada a privilégios oligárquicos, completando-se modernamente com o controle dos meios de comunicação de massa, ou pela propriedade concomitante desses veículos de divulgação ou por associação de interesses com os seus proprietários.

A par desse descumprimento de determinações constitucionais, têm ocorrido distorções graves, como a ocupação ilegal de grandes extensões de áreas pertencentes ao patrimônio público, incorporando-as ao patrimônio de indivíduos e empresas e destinando-se ao uso privado terras públicas que deveriam ser destinadas à consecução de objetivos sociais relevantes, como o assentamento de famílias de trabalhadores rurais, ou ter outra destinação específica. Um grande exemplo dessa distorção é o que ocorre em São Paulo, na região do Pontal do Paranapanema. No período do governo Montoro, o Instituto de Terras fez o levantamento da região e apurou que grande parte dela era constituída de terras públicas, invadidas por ricos e poderosos grileiros, que, favorecidos por políticos e autoridades coniventes, "" legalizaram"" as invasões. Outro exemplo é o que ocorre no Espírito Santo, onde a empresa Aracruz ocupou terras indígenas, pertencentes ao patrimônio da União e destinadas à ocupação permanente pelos índios, por mandamento constitucional, com a agravante da destruição de grandes porções da Mata Atlântica e da fauna ali existente, substituindo-a pelo que os índios denominam de florestas mortas, que são as plantações de eucalipto, destinadas à fabricação de papel. Respeite-se a Constituição, cumpram-se as obrigações que ela estabelece e grande parte da violência desaparecerá de cenário brasileiro. Mais Constituição para mais justiça e menos violência no Brasil.