Título: Uma nova fase de integração energética na América do Sul
Autor: Ricardo Sennes
Fonte: Jornal do Brasil, 24/04/2006, Opinião, p. A10

A América do Sul está sendo crescentemente reconhecida como uma potência energética. O rápido avanço da integração desse setor no continente desde meados dos anos 90 tem sido um dos elementos mais dinâmicos das relações econômicas regionais, apesar de vários percalços. Essa primeira fase da integração ocorreu de forma paralela às negociações do Mercosul e contou basicamente com investimentos públicos via empresas estatais e com baixo nível de institucionalização de regras. Uma nova fase do processo de integração se avizinha e tudo indica que suas características serão distintas da fase anterior, principalmente no que tange à participação do setor privado e à convergência regulatória. Essa nova fase deverá ser definida por alguns pontos fundamentais, tais como a necessidade de evitar rupturas de contratos como os que ocorreram na Argentina e Bolívia, necessidade de investimentos massivos - para o qual a participação do setor privado é vital - e convergência regulatória em questões que possam destravar vários projetos de base regional.

Não obstante a sobreposição de usos, as formas de comercialização dos diferentes segmentos energéticos são bastante distintas. O petróleo é usado tanto para transporte como para termoelétricas e indústrias. O mesmo ocorre com o gás. Já a eletricidade, além dos usos residenciais, concorre com o gás e o petróleo em vários campos da indústria. Contudo, enquanto a eletricidade demanda um mercado de consumo próximo à produção e não pode ser estocada (commodity local e regional de uso imediato), o petróleo é claramente uma commodity global, cujo mercado regional concorre com o internacional. O gás, por sua vez, encontra-se em uma situação intermediária entre esses dois casos. Ou seja, a viabilidade de uma matriz energética regional equilibrada, sustentável e eficiente depende de uma ótima acomodação entre esses setores que ora são complementares, ora são competidores, assim como de um ótimo equilíbrio entre a lógica do mercado (consumidores, produtores e transportadores) e as regras que defendam o interesse público e estratégico dos cidadãos e países da região.

A integração gasífera da América do Sul teve como ponto de partida o Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol). O investimento contou com a Eletrobrás, Petrobras e o BNDES, sendo este último o grande financiador das obras. O Gasbol, assim como os sete gasodutos que conectam a Argentina ao Chile, e o gasoduto entre Argentina e Uruguai representam passos iniciais de integração regional.

A diversificação da matriz energética é um dos objetivos do governo brasileiro, que aposta na abundância do gás natural no continente para ampliar a participação deste produto dos atuais 2,5% para 10% da matriz em 2008. O Brasil detém somente 4,6% da reserva conhecida na América Latina. A oferta interna é de 25 bilhões de m³, sendo 8 bilhões importados.

A Petrobras tem sido o pólo desse processo. Dentre seus objetivos principais está a expansão e a construção de gasodutos. Recentemente, fechou um acordo com a estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) com o intuito de explorar uma jazida de petróleo nesse país e processá-lo numa refinaria que seria construída em Pernambuco. Na Argentina, a Petrobras atua desde 1993 nos setores de petróleo, gás (exploração, refino e distribuição) e eletricidade. A produção e reservas na Argentina são as maiores da Petrobras fora do Brasil. Na Bolívia, a empresa atua desde 1995 - sendo a maior empresa do país - na produção, refino e distribuição de gás. A Petrobras possui também uma pequena participação na Colômbia.

Já com papel relevante na internacionalização do setor, mas preparando-se para tornar-se ator regional de relevo, a Eletrobrás deve receber em breve autorização do Congresso Nacional para efetuar investimentos diretos e prestar serviços em vários países da região. Com uma previsão de US$ 5 bi de investimentos em 2006, mira projetos no México, Argentina, Chile e América Central.

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O projeto de construção de um anel energético, acordado em agosto de 2005 na cúpula do Mercosul, representa a primeira iniciativa regional para o abastecimento de gás, em meio às várias iniciativas binacionais em andamento. Ele prevê a ampliação da rede de gasodutos com o objetivo de abastecer Argentina, Chile, Brasil e Uruguai com o gás natural de Camisea, no Peru. Orçado em US$ 2 bilhões, inclui a construção de um gasoduto de 1,2 mil quilômetros ligando o Peru ao Chile. Além disso, faz referência a redes na Argentina e à construção de 500 km de gasoduto entre Uruguaiana e Porto Alegre. Concluído, provirá aproximadamente 30 milhões de m³ diários (MMCD) de gás natural. Esse projeto poderá aliviar, a curto prazo, a crise no setor energético sul-americano e poderá incentivar o mercado de gás natural e o desenvolvimento industrial subcontinental.

As atuações da Petrobras como principal investidora regional, assim como do BNDES, fonte fundamental de financiamentos, definiram boa parte do perfil da integração energética regional: centralidade do investimento público via estatais, acordos bilaterais e baixo nível de convergência regulatória.

Essa primeira fase, embora fundamental, não parece ser um modelo sustentável de ampliação dos negócios e da integração energética regional. Os problemas na Argentina e na Bolívia, a indefinição do marco regulatório do gás no Brasil, os distintos modelos de PPPs dos países da região, a necessidade de investimentos massivos, entre outros fatores, impõem desafios significativos. Avanços institucionais vêm ganhando relevância nos diversos fóruns regionais, mas ainda estão muito aquém do necessário para um novo salto integracionista.

Com a liberalização dos modelos energéticos na região, as empresas privadas passaram a ser atores determinantes nos esforços de integração energética na América do Sul. Com elas garante-se não apenas a atração de recursos, mas também de tecnologia e diversificação das ofertas. Ampliar suas participações depende fundamentalmente de ações governamentais, seja na convergência de marcos regulatórios, seja em parcerias que viabilizem recursos para a construção de infra-estrutura. Além de investidoras, as empresas privadas podem participar como captadoras de financiamento externos, tomadoras de risco e gerenciadoras de vários projetos.

Os últimos anos mostraram o papel estruturador que o Brasil pode exercer na regionalização desse segmento. Papel esse que se espera venha a se cumprir na definição de uma nova estratégia para a fase em gestação. Para o Brasil importa definir um mercado regionalizado estável e competitivo, que viabilize ganhos de escala e de eficiência na cadeia de serviços de energia, tornando viável, assim, significativos investimentos privados e o desenvolvimento de novos negócios e produtos.