Título: A esquerda fora de lugar (1)
Autor: RICARDO ANTUNES
Fonte: Jornal do Brasil, 28/10/2004, Opinião, p. A11

O curto Século XX presenciou a desconstrução de uma dupla experiência: foram derrotadas tanto a experiência soviética (equivocamente denominada como ''socialismo real''), quanto o experimento social-democrático. Neste artigo vamos tratar da última experiência, deixando o empreendimento soviético para o próximo. Ainda que a experiência social-democrática, erigida especialmente nos chamados anos dourados (1950/70), não tenha encerrado plenamente sua vigência, parece plausível crer que sua saúde padece de doença em fase terminal. Estruturada em limitado número de países do Norte, o compromisso social-democrático era uma articulação efetivada entre setores representantes do capital e do trabalho, tendo a ''mediação'' do estado. E este compromisso, em síntese, permitia, de um lado, que as forças sociais do trabalho ampliassem seus direitos em troca do abandono das autênticas aspirações por um futuro socialista e, de outro, que o capital preservasse seu futuro, através de concessões reais no presente.

O resultado, pôde-se constatar cerca de três décadas depois, nos princípios de 70, quando forte crise estrutural atingiu o capitalismo. Desconfiados do culto neutral do estado, já em 1968 as ações de rebeldia dos trabalhadores explodiram nas principais capitais do mundo, atingindo seu ápice e questionando o compromisso social-democrático, ancorado em sua base pela produção taylorista e fordista e pelo fetichismo do estado. Na bela lembrança de Alain Bihr, os trabalhadores cansaram-se de perder a vida para ganhá-la, esgarçando-se as bases sociais do welfare state.

A resposta do capital foi explosiva: urgia intentar um processo de reestruturação produtiva de amplitude global, que assimilasse desde o toyotismo japonês até as diversas formas de acumulação flexível que floresciam no ocidente. Era o momento, ainda, de começar a implementar o receituário neoliberal. O estado, que parecia ao longo dos anos dourados ter finalmente controlado o mercado, passou a ser, em verdade, por este desregulado. Efetivava-se a vingança neoliberal dos capitais globais, inicialmente pelas patas de Thatcher e Reagan. A Dama de Ferro embebia-se em sua máxima There is no alternative!, não sem antes desvertebrar o movimento operário britânico, ao reprimir virulentamente a histórica greve dos mineiros de 1984/5, que paralisou as minas durante um ano, contrárias ao seu fechamento.

O ideário e a pragmática neoliberais puderam proliferar e viver seu clímax, ao longo dos anos e décadas seguintes. E, para a ironia da história, não somente a direita, mas também uma parcela da esquerda, em fase de desencanto, acreditou na mistificação presente na apologética de Fukuyama, que um dia imaginou que finalmente encontrávamos o fim da história...

Quando Tony Blair foi eleito em 1997, no Reino Unido com seu New Labour, a esquerda britânica já havia passado por uma longa mutação transformista. Um significativo processo de ''modernização'' se efetivou no antigo Partido Trabalhista, que o fez abandonar seu passado social-reformista, para se converter numa espécie de símile do Partido Democrático norte-americano, apoiado especialmente nos novos setores da burguesia britânica, num momento, então, de enorme desgaste do neoliberalismo tradicional de Thatcher e John Major.

Vale lembrar que desde o início dos anos 90 vinha se acelerando, no interior do Partido Trabalhista, o que posteriormente foi denominado como ''terceira via'', isto é, a busca de um caminho alternativo entre a social-democracia clássica e o neoliberalismo. A mudança da ''marca'' do partido (Labour Party para New Labour) já expressava o claro distanciamento frente ao conteúdo trabalhista e sindical presente desde sua origem, eliminando qualquer vestígio que pudesse vagamente lembrar o socialismo. No ano de 1994, ao eliminar a sua cláusula 4 (que defendia a propriedade coletiva, e substituí-la pelos valores da economia de mercado fundados no empreendimento e rigor da competição), o trabalhismo inglês selava o abandono de qualquer laço com seu passado social-reformista.

A vitória eleitoral de Blair, em 1997, foi o coroamento desse processo de conversão da esquerda em força alternativa para a manutenção da pragmática neoliberal, ainda que com outra roupagem, autoproclamada como social-liberalismo. Respaldado pelo suporte intelectual de Anthony Guiddens e David Miliband, Tony Blair deslanchava sua ''terceira via''. A ''esquerda'' finalmente encontrava seu espaço, fora do lugar!