Título: Lembrança de Celso Furtado
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 07/12/2004, Outras Opiniões, p. A11

Ainda tenente-coronel de Estado Maior, tive em mãos um livro que me impressionou sobremodo. Sublinhei inúmeras de suas passagens, rejubilando-me por ver que nelas eu encontrava lúcida explicação - com que concordava - do porquê do subdesenvolvimento econômico do Brasil e da crítica da penetração do marxismo em grande parte da juventude brasileira. Eram páginas de um pequeno livro, pouco mais que um opúsculo, ple no de lições. Chamava A pré-revolução brasileira. Seu autor: o economista Celso Furtado que, na introdução, diz ser o livro constituído de estudos dirigidos à juventude universitária com a qual tivera contato em várias universidades. Publicado pela Editora Fundo da Cultura, em 1962, tenho-o ainda hoje com anotações várias que ressaltavam o entusiasmo com que o lia, diagnosticando o desmedido custo social do ''desenvolvimento dos últimos decênios, mas que nada modificou as condições de vida de três-quartas partes da população do país''. De fato, vivíamos inebriados no otimismo do período JK, dos ''50 anos em 5''. Mas Celso Furtado advertia para a ''crescente concentração social e geográfica da renda; as grandes massas que trabalham nos campos, maioria da população brasileira, que nenhum benefício auferiram desse desenvolvimento e que viram, ainda, reduzir-se seu padrão de vida quando confrontado com os grupos sociais ocupados no comércio e outros serviços; o anacronismo da estrutura agrária que provocou aumento relativo de renda da terra premiando grupos parasitários; e, no plano político-administrativo, distorções que aumentaram o coeficiente de desperdício nas funções do Estado, ampliadas, diversificadas e desacompanhadas de reformas de base, e onde os grandes contratos de obras públicas passaram a ser fonte de acumulação rápida de fortunas, dentro e fora do governo''. Daí, concluía ele ''ser compreensível a indignação da juventude, nesse quadro com supostos representantes do povo, eleitos pelos empreiteiros de obras públicas, e a aliança da máquina feudal com as verbas orçamentárias produzindo parlamentares, que só poderão sobrevir se forem instrumentos dóceis de seus financiadores''.

Claro que o livro não se limita a diagnosticar, mas a apresentar soluções. Meu entusiasmo levou-me a citar o pensamento de Celso Furtado na aula inaugural do CPOR de Belém, presente meu comandante da 8ª Região Militar, o general Taurino de Resende, que ficara de acordo com o que se continha em A pré-revolução brasileira. Um general ''linha dura'', que fez questão de presidir a cerimônia de abertura dos cursos do CPOR, tocado, especialmente, pela análise que o autor fazia do porquê da indignação da juventude brasileira e do seu rumo enganoso das idéias de Marx, como solução.

A vida de Celso Furtado teve uma sucessão de surpreendentes contrastes, a partir da desfiguração pelo Congresso do seu Plano Trienal no governo Jango. Essa foi uma de suas amarguras com os políticos, ou seja, com os parlamentares ''dóceis aos seus financiadores''. Veio 31 de abril de 1964. E Celso Furtado foi um dos primeiros cassados. Chamado que fui ao Ministério da Guerra, pelo general Taurino que fora nomeado para dirigir a Comissão de Investigação Sumária, fui recebido por ele ao lado do ministro da Guerra, general Costa e Silva. Aproveitei a oportunidade e perguntei ao ministro por que fora Celso Furtado cassado. Lembrei que o general Taurino prestigiara a minha aula inaugural no CPOR de Belém, um ano antes, e como o economista criticara, no livro, a União Soviética, pelo seu rápido desenvolvimento obtido, porém, por métodos anti-humanos e com restrições intoleráveis a todas as formas de liberdade individual. Chamou a isso de ''teoria da salvação pela punição''. Ele não era comunista. Por que a cassação?

O general Costa e Silva ouviu-me delicadamente e me disse: ''Recebi enorme pressão de revolucionários nordestinos, especialmente pernambucanos, que não lhe perdoavam, na direção da Sudene, ter-se cercado de comunistas. Não tive como me opor''.

A dose de ironia negra que me assaltou, no momento, foi que um jovem economista da equipe de Celso Furtado, na Sudene, era filho do general Taurino, fato de que decorreu, mais tarde, o pedido de demissão da CIS, do pai, preso que foi seu filho por defender Celso Furtado. Senador pelo Pará, muitos anos depois, assisti a um depoimento de Celso Furtado, na Câmara, ainda vigente o ciclo militar. A oposição parlamentar fez tudo para dele obter uma catilinária contra o governo. Não obteve, notadamente quanto à política salarial e salário mínimo. Sobre a política salarial - de que eu fora parte quando ministro do Trabalho - decepcionou a oposição, pois não lhe fez críticas. Ao contrário, se não lhe fez o elogio aberto, fê-lo indiretamente ao discordar de intervenções fortemente críticas à política salarial.

Finalmente, nesses contrastes de sua vida, nele pensei muito ontem, ao ler o artigo do João Ubaldo Ribeiro, sobre a ausência do presidente Lula no velório de seu amigo Celso Furtado...