Título: Da liberdade ao caos
Autor: Dom Eugênio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 08/01/2005, Outras Opiniões, p. A11

O mundo atual vem exigindo crescente respeito aos direitos humanos. Qualquer infração, nesse sentido, adquire uma repercussão internacional. A Igreja, repetidas vezes, tem se manifestado de maneira positiva e firme sobre o assunto. Há, contudo, uma diferença. Ela não admite que seja minado esse fundamento da sociedade, pois, sem princípios objetivos de ética e de moralidade, resta apenas uma disputa entre os mais fortes. E vem a degradação, como nos ensina a História. São bem recentes os exemplos de Hitler e Stalin. Não existe direito do homem sem Deus. Há vozes que, sôfregas, se elevam para defender a dignidade humana no plano material, mas emudecem diante de ataques a valores essenciais, que são sua base insubstituível. Violar esta ordem moral é desrespeitar, ao mesmo tempo, direitos de Deus e direitos humanos.

O uso da liberdade não pode prescindir de uma lei que tem suas raízes no plano eterno e merece sempre acatamento e observância.

Essa concepção é o alicerce da ordem, indispensável à convivência e mesmo à sobrevivência de seres criados. Do contrário, teremos o caos. Assim, por exemplo, a manifestação artística é válida, enquanto não colide com esses critérios que são alicerces do bem comum. Aliás, no momento em que essas atividades, atribuídas à inteligência e à cultura destroem valores que nos colocam acima dos instintos, perdem suas características próprias. E não esqueçamos que tais exigências são privativas do que é criado à imagem e semelhança de Deus. Toda essa onda de pornografia desrespeita a dignidade humana e aniquila os fundamentos da sociedade.

Devemos defender a liberdade de expressão. A legítima, bem entendido. Quando os homens se insurgem contra as regras morais, fundamento de uma digna existência, torna-se dever da sociedade coibir os desvios. Crime não é apenas tirar a vida do inocente, lesar os bens materiais. Estimular os instintos e levá-los a se insurgir contra a reta razão é minar a comunidade no que ela tem de mais sagrado. É ferir um direito cuja guarda está confiada ao Estado, chamado a intervir quando falham os mecanismos alicerçados nos preceitos da lei natural, de uma consciência formada em nobres ideais.

Como não pode haver nação sem leis, os povos não subsistem sem esse fundamento moral.

Toda lei tem sempre um sentido restritivo, o que provoca reações e faz surgir um conflito. Sua observância exige sacrifícios, mas proporciona, em compensação do fiel cumprimento, segurança, alegria e satisfação.

Podemos constatar a existência de alguns critérios realmente perniciosos, que se infiltram em nosso meio.

O direito à felicidade pessoal, mesmo à custa de deveres, pode, por exemplo, levar a mãe a procurá-la, com prejuízo e com sacrifício de seus filhos. Um exemplo é o aborto. Isso constitui um crime contra a sociedade humana, além de destruir a dignidade materna.

Não comete falta apenas quem assim age, mas todo aquele que se acovarda diante do fato acolhendo, apoiando e, o que é mais grave, tentando justificar. A caridade com o indivíduo não se deve confundir jamais com a aprovação de erro.

A permissividade realmente corrói todo o fundamento da desejável convivência entre os homens. Quando o que agrada se constitui norma de conduta, envereda-se pela decomposição da pior espécie.

Decresce a freqüência à prostituição institucionalizada por parte de certas classes sociais. Poder-se-ia pensar que é o resultado de uma elevação moral. Não. Ela é a conseqüência de uma estranha e dolorosa constatação, fruto dos anticoncepcionais. Evitando os efeitos, estimulam a destruição das últimas barreiras que eram acatadas por temor da gravidez indesejada.

Uma mentalidade permissiva torna mais difícil a observância da Lei Moral. Ouvi o fiel relato de uma conversação havida em um ambiente dos mais sofisticados entre nós. Assemelha-se muito ao que aconteceu, por exemplo, no período de decadência do Império Romano. Quando falta o pudor até em público, é sinal de que a decomposição já atingiu níveis perigosos à sociedade.

Quando o critério de moralidade deixa de se colocar acima do egoísmo e a satisfação dos instintos assume foros de legalidade, algo de grave nos envolve.

O mundo está cheio de ídolos e muitos se prosternam ante a obra de suas próprias mãos. Dispendem fortunas naquilo que não sacia, clamam por liberdade, empenham-se acirradamente em conquistá-la, mas continuam escravos e infelizes em meio a tanto progresso material.

É nosso dever preservar estas leis básicas à dignidade humana. Ele não compete apenas ao Governo, mas cada um de nós que responderemos em graus diversos, diante de Deus, pela contribuição dada.

Razões de natureza religiosa e patriótica a isso nos obrigam. Cada um, em torno de si e no meio em que vive e trabalha, poderá, por atitudes e palavras, destruir ou resguardar uma ordem que é essencial ao bem estar individual e coletivo.

A Lei Moral se fundamenta em Deus, mas sua preservação está vinculada à própria sobrevivência do homem.

Recentemente, a 2 de outubro de 2004, o Santo Padre João Paulo II recebeu, na Sala Clementina do Palácio Apostólico, no Vaticano, uma Comissão da Revista Política Internacional e os membros da Televisão francesa que foram entregar ao Papa João Paulo II o Prêmio da Coragem Política. O Presidente da revista, em seu discurso, afirmou que o Romano Pontífice realizou ''uma obra, terrena imensa, gigantesca. Uma atuação guiada por uma intuição liberadora rara em toda a História. Vós sois para nós, Santo Padre, sejam quais forem nossas crenças e nossas convicções filosóficas, uma estrela na noite, uma referência ética, um farol que varre o oceano''. Pois é esse mesmo homem que alerta a consciência dos cristãos e homens de bem, na defesa da vida contra o aborto.