Título: Choro por um malandro
Autor: Tárik de Souza
Fonte: Jornal do Brasil, 18/01/2005, Caderno B, p. B1

O sambista Bezerra da Silva morreu ontem aos 77 anos, vítima de uma parada cardíaca. Coube ao retirante pernambucano, percussionista e cantor moldado nas manhas do paraibano Jackson do Pandeiro, dilatar os limites do partido alto carioca tranformando-o em porta voz da guerra civil da cidade partida. Depois de lançar-se nas pegadas do ídolo, com O rei do coco, em 1975, ele abraçou o partido alto (Nota 10, em 1977) e a partir do começo da década seguinte embrenhou-se no estilo que denominei ''sambandido'', embora o nome não tivesse sua aprovação. Na verdade, Bezerra antecipava-se ao ''gangsta rap'' americano, disseminado a partir de meados dos 80 com suas loas à vida turbulenta e marginal dos rappers e sua ligação com os traficantes locais (50 Cent foi um deles, como o fuzilado Sabotage, em São Paulo). As realidades são muito diferentes, já que o samba de Bezerra, colhido na fonte de autorias escondidas por codinomes (muitos eram procurados pela polícia ou por rivais), dialogava com a bandidagem nativa na base do humor (O doutor está na sua capturação, Maloca o flagrante). Mas também não deixava de exaltar figuras do tráfico como nos libelos pelo recém-assassinado Escadinha em Meu bom juiz (Beto Sem Braço/ Serginho Meriti) e Juramento jurou (Gil de Carvalho/ Mário Gogó/ Regina do Bezerra).

Nascido no Recife em 1927, José Bezerra da Silva instalou-se no morro do Cantagalo em 1949 e sobreviveu nos primeiros anos alternando a atividade musical com a de pintor de paredes. Foi levado para o rádio no ano seguinte por um vizinho de favela que tinha acabado de estourar em parceria com Tancredo Silva e Sátiro de Melo um samba no carnaval, General da banda, nas vozes de Blecaute e Linda Batista. Era ninguém menos que Alcides Fernandes, que foi empregado da família e um dos primeiros parceiros de Tom Jobim, responsável por sua introdução no universo das editoras e sociedade arrecadadoras. Bezerra estudou música e orgulhava-se da condição de leitor de partitura, tendo trabalhado nas orquestras da extinta gravadora Copacabana e da TV Globo. Mas seu reconhecimento veio a partir do êxito do tipo que criou, sempre de boina, camisas coloridas, a bordo dos temas da malandragem armada, que sucediam os tempos ingênuos da picardia de outro Silva, o Kid Morengueira, aliás Antonio Moreira da Silva (1902-2000). Foi sua atitude e temática que alinhavaram uma aliança entre o BRock e o samba que viviam apartados nos 80. E Bezerra acabou regravado, do Barão Vermelho ao Planet Hemp.

Exímio no fraseado, preenchendo os intervalos dos versos com repetidos bordões (''aí, ta certo!'', ''eu falei pra você'') Bezerra fatiou o repertório colhido em outras assinaturas em algumas linhas centrais. Numa delas utilizou metáforas ou imagens explícitas para falar de drogas como no clássico Malandragem, dá um tempo (''vou apertar/ mas não vou acender agora''), do impecável trio Popular P., Adelzonilton e Moacyr Bombeiro. E mais Overdose de cocada (''é cocada boa/ tem da preta e tem da branca e quem prova não enjoa''), de Dinho e Ivan Mendonça. E ainda A semente (Walmir da Purificação/ Tião Miranda/ Roxinho/ Felipão), Garrafada do norte (Edson Show/ Wilsinho Saravá/ Roxinho), Produto importado (G. Martins) e A fumaça já subiu pra cuca (Adelzonilton/ Tadeu do Cavaco). Em outra direção, fuzilou os alcaguetes (Ele cagueta com o dedão do pé, Dando mole pra Kojak, Lingua de tamanduá, Defunto cagüete, Boca de radar, Fofoqueiro é a imagem do cão) e ironizou os costumes (Minha sogra parece sapatão, Sua cabeça não passa na porta, Sequestraram minha sogra). Exaltou a umbanda (Vovô cantou pra subir, Zé Fofinho de Ogum, Meu pai é general de umbanda) mas não deixou de fustigar os mercenários (Pai Véio 171) - em 2001, se converteria à Igreja Universal do Reino de Deus. Além disso, foi um crítico feroz da corrupção (Candidato caô caô, É ladrão que não acaba mais) e das injustiças sociais (Violência gera violência, Presidente cara de pau, Pobre aposentado, Justiça social, Vítimas da sociedade), que levou adiante a saga do protesto e da irreverência do gênero primal do país.