Título: Além do Fato: O Haiti depois do tsunami
Autor: Juan Gabriel Tokatlian
Fonte: Jornal do Brasil, 12/01/2005, Internacional, p. A12

Na América Latina, o efeito diplomático-militar imediato do devastador maremoto na Ásia deveria ser a retirada das tropas que o Brasil, a Argentina e o Chile têm no Haiti. Uma análise estratégica e desprovida de dogmas conduz à conclusão. O Conselho de Segurança da ONU aprovou recentemente um novo mandato de permanência dos soldados, em sua maioria sul-americanos, no Haiti até meados deste ano. Apesar dos poucos avanços em matéria de ordem pública, a missão da ONU na ilha permanece.

De fato, os assassinatos políticos continuam (mais de 100 desde setembro), a dificuldade de desarmar os distintos grupos paramilitares continua e ainda hoje é impossível contar com um mínimo clima de convivência.

Apesar dos magros resultados na obtenção dos respaldos assistenciais e financeiros, prometidos por vários países e instituições, e das deploráveis condições sociais geradas pela última temporada de furacões (que deixou 10 vezes mais mortos que a revolta de 2004 contra o então presidente Jean Bertrand Aristide), o Conselho de Segurança insiste em uma solução basicamente militar para fazer frente à calamitosa situação econômica e política.

Da mesma forma, apesar da estrutura de ilegalidade seguir prosperando ¿ 20% da cocaína colombiana passa hoje pelo Haiti ¿ e dos efeitos que a instabilidade no país causa à vizinha República Dominicana, a ONU persiste em olhar o Haiti com olhos americanos: evitar a saída de mais refugiados para a Florida, ensaiar um esquema de neoprotetorado à força e evitar parte da responsabilidade pelo estado deplorável da ilha.

Depois do letal fenômeno do tsunami, a comunidade internacional centrará os escassos recursos para enfrentar o desastre natural e auxiliar na reconstrução asiática. O Haiti ¿ com todos os padecimentos e urgências ¿ ficará, novamente, em segundo plano. A tragédia na Ásia se somará ao desastre no Iraque e ambos concentrarão a atenção e os aportes americanos e mundiais ao longo de 2005.

Argentina e Brasil, que almejam assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU, podem tentar facilitar uma solução política ampla no Haiti. No entanto, é falso sustentar que a América do Sul tem que assumir um compromisso especial no e pelo Haiti, ainda mais quando se terá cada vez menos recursos tangíveis para resolver os problemas caribenhos. Além disso, a piora das condições sociais e políticas da ilha poderia fazer com que as tropas sul-americanas terminem em um pântano militar.

Não é desonroso tirar os soldados da região do Haiti. O indecoroso é deixá-las no país sem objetivos políticos claros e sem o efetivo respaldo internacional.