Título: Amostra grátis de outro mundo possível?*
Autor: Maria Rita Kehl
Fonte: Jornal do Brasil, 28/01/2005, Outras opiniões, p. A11

O Fórum Social Mundial em Porto Alegre vem reinventando, desde 2001, o conceito de espaço público. Esta pequena ilha de invenção de utopias oferece, de graça, tudo o que um cidadão possa desejar. Por cinco dias, os equipamentos urbanos estão honestamente a serviço das pessoas comuns, como deveria ser. Há água para beber, banheiros (poucos) para se usar, informação em toda parte, transporte abundante. Ninguém confere os crachás, de modo que é possível fazê-los circular entre os amigos. Afinal, nós somos os sujeitos (e não o ''público-alvo'') a quem se dirigem os palestrantes. A polícia está orientada para tratar bem as pessoas; fiquei muito espantada quando esbarrei em um guarda e ele pediu-me desculpas, além de me oferecer educadamente a informação que eu pedia. O que deveria ser normal.

Este dispositivo urbano/institucional, somado à cordialidade espontânea produzida pela suposição - repito, suposição - da construção de um projeto comum, cria um ambiente onde o contato com o outro deixa de ser ameaçador ou invasivo (dois modos de percepção do semelhante típicos do mundo capitalista neoliberal) para ser simplesmente amistoso e cooperativo. Aqui, gostamos de esbarrar o tempo todo em grupos de africanos, de índios, de favelados, de europeus politicamente corretos. Em princípio, estamos no mesmo barco. Estamos? É a pergunta que cabe.

Passeando entre as mesas-redondas do ''espaço temático'' (a designação não poderia ser mais inofensiva) das Diversidades, imaginei estar no que deveria ser o socialismo do futuro: uma alegre e dinâmica convivência entre diferentes subculturas, em um mundo não competitivo em que as ''identidades'' raciais, sexuais, religiosas e étnicas solidarizassem-se sem ter que transformar suas expressões subjetivas em mercadorias para a indústria do espetáculo. Talvez o ''individualismo de mercado'' que amadureceu sob o liberalismo tenha preparado o terreno ideológico para um socialismo não-autoritário. É possível imaginar que, em um mundo não regido pela lógica da acumulação do capital, a verdadeira diversidade tenha espaço para se manifestar: não a diversidade das mercadorias produzidas em série, que se traduz em termos de ofertas para todas as preferências do consumidor. A livre circulação das tribos mais esquisitas, possibilitada pelo espaço público, é a demonstração de um modelo de socialismo em que a mais importante produção de riquezas se manifeste sob a forma das incontáveis expressões da subjetividade. Mas quem se encarrega de pensar as vias para a construção dessa nova ordem global?

Parece que o fascínio que esses encontros exercem sobre os representantes das esquerdas não está na oportunidade que o FSM oferece de se pensar alternativas globais ao capitalismo. Infelizmente, o novo modelo descentralizado do FSM não permite que se produza nenhuma proposta capaz de unificar a multiplicidade de micropolíticas que se apresentam aqui. O grande interesse do Fórum, para quem participa dele, é o desfrute desta amostra grátis do que poderia ser um mundo democrático e socialista. Inventamos um microcosmo artificial que simula o ''outro mundo possível'' que queremos, como se ele pudesse nascer por obra de nosso entusiasmo coletivo. O risco do FSM é o de tornar-se, à maneira pós-moderna, o inocente simulacro de sonho socialista que não chega a ameaçar o poder concreto do capitalismo.

O que une a multiplicidade dos grupos participantes do FSM é a condição comum de exclusão; quase todos são constituídos por gente supérflua, gente que não interessa, porque não serve, à globalização. A exceção fica por conta dos representantes das diversidades sexuais, pois não há nada que sirva ao mercado com tanta eficácia quanto as pulsões sexuais e as imagens que as representam. A aposta de Reich e Marcuse no potencial revolucionário da liberação sexual não se confirmou; o mais gozar sexual revelou-se um poderoso aliado da mais valia. Estes defensores das sexualidades extravagantes estão mais incluídos na nova ordem mundial do que eles mesmos gostam de imaginar. Logo, logo, as condições para a realização das mais variadas preferências sexuais vão ser acrescentadas à lista dos direitos do consumidor.

Quanto aos outros todos, eu me pergunto se a demanda que une os detentores dessa enorme disponibilidade de força de trabalho e criatividade que a economia globalizada dispensou não é simplesmente a de ingressar na ordem que os excluiu. Esta edição fragmentada do FSM corre o risco de se transformar em uma grande feira dos excluídos, na qual representantes dos setores que o capital internacional marginalizou vêm tentar vender seus produtos. Falta uma proposta abrangente, falta uma teoria crítica que amplie a compreensão das formas contemporâneas de exploração e exclusão criadas pela globalização. Falta um sentido comum às lutas pontuais.