Título: Independência e controle da magistratura
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 29/01/2005, Outras opiniões, p. A11

O Conselho foi mal recebido por magistrados que temem a perda de independência, mas bem recebido por magistrados que consideram que será benéfico para o prestígio dos juízes

O Judiciário brasileiro é composto, quase sem exceção, por juízes honestos, trabalhadores e cumpridores de seus deveres funcionais. Entretanto, essa grande maioria, sob influência de fatores afetivos, como a amizade ou o coleguismo, ou pelo temor de que o reconhecimento público de que há maus juízes comprometa a imagem da instituição, nada faz para coibir ou corrigir o comportamento dos colegas desonestos ou que, por variados motivos, deixam de cumprir seus deveres funcionais. E quando um órgão corregedor promove uma ação disciplinar e aplica uma punição, quase que só contra juízes de primeira instância, o faz com tanta discrição, muitas vezes em sessão secreta, que quase ninguém fica sabendo, sendo generalizada a impressão de impunidade absoluta. Na realidade, vários casos de magistrados corruptos que vieram a público recentemente eram bem conhecidos de seus colegas de Tribunal, mas aí funcionou o ''espírito corporativo'', que já era temido por Thomaz Jefferson, como ele próprio escreveu, quando da elaboração da Constituição dos EUA.

O comportamento condescendente dos membros dos Tribunais, interpretado por muitos como cumplicidade corporativa, tem contribuído para que se trate com escândalo qualquer denúncia contra magistrados, mesmo que falsa e injusta, sobretudo quando o divulgador tem posição de prestígio, como um chefe de Executivo, um senador ou um grande órgão da imprensa. Aí está a raiz do problema do controle do Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda Constitucional 45, recentemente aprovada pelo Congresso. O Conselho foi mal recebido por magistrados que temem a perda de sua independência no exercício da função jurisdicional, mas, ao mesmo tempo, foi bem recebido por alguns magistrados que não têm esse temor e consideram que o Conselho será benéfico para o prestígio dos juízes, por impedir abusos e corrigir vícios que ocorrem em Tribunais Superiores e prejudicam a imagem de toda a magistratura.

Os que se opõem à criação do Conselho alegam que sua criação ofende dois princípios fundamentais da Constituição brasileira, a separação de Poderes e a independência dos juízes, por três motivos: a) introdução do controle externo, o que afeta a independência do Judiciário; b) pessoas não integrantes da magistratura, inclusive membros do Ministério Público, que é órgão do Poder Executivo, farão parte do Conselho e irão tomar decisões importantes sobre o funcionamento do Judiciário e a situação funcional de magistrados ; c) o Conselho poderá ser usado para interferência nos julgamentos, ficando anulada a independência do Judiciário. Examinada a Emenda 45 e sem perder de vista que ambos os princípios referidos são essenciais para a preservação da liberdade, a garantia dos direitos e outros valores básicos inerentes ao Estado Democrático de Direito, não me parece que ocorra inconstitucionalidade. O princípio da separação de Poderes, que é fundamental, jamais significou o completo isolamento de cada Poder em relação aos outros. O que o princípio proíbe é a interferência de membros de um Poder no exercício das competências próprias e exclusivas de outro. Na prática, os magistrados devem ter assegurada absoluta independência na formação e expressão de suas convicções quanto aos casos submetidos à sua decisão, sem qualquer interferência externa ou interna.

Nos termos da Emenda Constitucional 45, o Conselho Nacional de Justiça é órgão do Judiciário e não de outro Poder, mas além disso, de acordo com o que se acha expresso e claro no artigo 103-B, § 4º, somente ''compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes''. A enumeração de atos que o Conselho pode praticar, que vem nos dispositivos seguintes, está subordinada a essa delimitação, quanto à natureza e aos objetivos do controle. A par disso, dos 15 membros do Conselho, seis não serão magistrados, mas só integrarão aquele órgão depois de aprovados pelo procedimento previsto na Constituição. Após a aprovação e a posse, eles serão membros do Judiciário, como já ocorre há muito tempo com os representantes dos advogados e do Ministério Público. Na prática, é inegável que há o risco de que Conselho tente exorbitar de suas competências e pretenda usar o pretexto do controle administrativo para coagir ou punir juízes que, com sua independência, estejam contrariando interesses políticos ou econômicos. Esse abuso do Conselho será inconstitucional e poderá ser obstado por meio de ação de competência do Supremo Tribunal. Por tudo isso, será indispensável a máxima atenção de todos, controlando o controlador e agindo contra ele se necessário.