Título: Sociedades ou mercados?
Autor: Ricardo Carneiro*
Fonte: Jornal do Brasil, 29/01/2005, Outras opiniões, p. A11
Sob o título acima, um conjunto de seminários estão sendo promovidos por importantes instituições nacionais e internacionais, como Attac, Unafisco, dentre outras, no espaço do Fórum Social Mundial. O tema é de grande pertinência e complexidade, e diz respeito à regulação do capital financeiro na esfera internacional, ou seja, vai a fundo na discussão das políticas antiglobalização.
A oposição entre sociedade e mercados financeiros pode parecer uma criação da esquerda radical, mas não é. Ela foi um tema crucial da reflexão do maior economista do século XX, o britânico J. M. Keynes. Tanto ele quanto um século antes, Karl Marx, perceberam com acuidade o caráter contraditório da moeda nas sociedades humanas. De um lado, um instrumento de facilitação das trocas e de denominação dos contratos e, portanto, uma alavanca do desenvolvimento. De outro, veículo de acumulação da riqueza e provocador de distúrbios.
A história do sistema monetário internacional mostra que a livre concorrência entre moedas tende a produzir um sistema hierarquizado no qual algumas moedas gozam de um privilégio exorbitante enquanto outra pagam pedágios intoleráveis. Há várias formas de manifestação dessa hierarquia. A facilidade com a qual a economia americana financia seus déficits externos, a juros baixíssimo, é o exemplo atual do privilégio, já a alta taxa de juros da dívida externa brasileira expressa o pedágio pago para participar desse sistema.
A globalização reforça no plano internacional o caráter de veículo da riqueza, desvinculado do circuito de mercadorias e capitais produtivos, contido na moeda. Instituir os controles à circulação do capital financeiro significa limitar essa autonomia e a sua dimensão de reserva de valor ou de produtora de juros.
Essa ordem internacional produziu situações de grande instabilidade entre as moedas centrais como a observada atualmente entre o dólar e o euro. Além disso, tem provocado crises monetárias e cambiais recorrentes, envolvendo as moedas dos países periféricos. Estes últimos têm pago o maior preço, ou o fazem na forma de juros muito altos incidentes sobre suas dívidas ou, para safar-se dessas crises recorrentes têm de acumular divisas em moeda forte como fazem os asiáticos, reservas que, numa ordem internacional mais estável poderiam ser utilizadas para ampliar seu potencial de crescimento.
A regulação do fluxo de capitais, um dos elementos presentes na ordem de Bretton Woods que teve em Keynes um de seus inspiradores, visa reduzir e quiçá eliminar o caráter autônomo dos fluxos de capitais, visível na sua desvinculação com os circuitos das mercadorias e do investimento produtivo, isto é, visa ampliar o caráter facilitador das trocas da moeda em detrimento de seu papel de veículo da riqueza financeira.
A discussão tem evoluído para propostas concretas que pretendem inibir a livre circulação de capitais. Algumas das medidas como a instituição da taxa Tobin são conhecidas. Mas há outras adicionais de grande importância como, por exemplo, a extinção dos paraísos fiscais sob a égide dos quais circula boa parte do dinheiro legal e ilegal do mundo, desde aquele relativo aos ilícitos fiscais e cambiais, aos que são o resultado do tráfico de armas, drogas etc. Há ainda uma proposta recente de contenção da assim chamada ''lavagem de lucros'' pelas empresas transnacionais que usam o comércio intrafirma e os preços de transferência para fabricar lucros em paraísos fiscais e diminuí-los nos países de origem nos quais seriam mais tributados.
O avanço nas propostas concretas não ilude os participantes do debate sobre a necessidade de ir mais a fundo na regulação do capital financeiro e construir uma ordem econômica menos sujeitas a crises monetário-cambiais. Esse desdobramento exigiria ampliar a regulação simultaneamente nos âmbitos doméstico e internacional. Em síntese, a tarefa não pode estar restrita a um só país, mas há de ser uma ação multilateral a exigir inclusive uma reformulação das suas instituições.