Título: Os cisnes pressentiram o desastre
Autor: Augusto Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 14/01/2005, País, p. A3
Designado para chefiar a embaixada brasileira na Suíça, um velho e bom diplomata recusou o convite com fina ironia: ''Não gosto de chocolate nem uso relógio'', informou. Achava que não havia muito trabalho por lá. As coisas mudaram. Hoje temos na Suíça o embaixador em Berna, dois outros baseados em Genebra e um na chefia do consulado-geral em Zurique.
Por que tanta gente? Ou por que 14 diplomatas em Lisboa? Porque o bem-bom está na Europa, sobretudo no ''circuito Elizabeth Arden'', que inclui os Estados Unidos. Vagas nesse universo sempre charmoso continuam disputadas a tapas, unhadas ou beijos de judas. Há 17 diplomatas em Roma, 22 em Londres, 14 em Paris e, em Nova York, 32. Isso mesmo: 32. São 22 na ONU, sete no Consulado-Geral e quatro no escritório financeiro, fora a turma na embaixada em Washington.
Pequenas multidões estão acampadas também em países vizinhos. Há 29 diplomatas na Argentina, 18 no Paraguai. Somadas as legiões baseadas em Londres e Assunção, são 40 representantes da geléia tropical. Três a menos que o total de profissionais remetidos pelo Itamaraty ao continente africano.
São sete na África do Sul, quatro em Moçambique, três em Angola, três na Tunísia, três no Egito, dois na Argélia (onde o embaixador chefia a própria mulher), dois no Quênia, dois em Cabo Verde, dois na Costa do Marfim, dois no Gabão, dois no Marrocos, dois na Nigéria, dois na Síria. Em sete nações, o embaixador trabalha sozinho, sem dispor de um único ex-aluno do Instituto Rio Branco: Líbia, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Zimbábue, Senegal, Cabo Verde, Zaire e Gana.
Resolvido a ampliar a presença brasileira na África, o governo Lula recomendou ao Ministério das Relações Exteriores que providenciasse mais embaixadas por lá (e tornasse menos anêmicas as representações existentes). A troika do Itamaraty novamente se mostrou tão rápida no gatilho quanto vesga na mira. E os maus ventos sopraram com perverso vigor.
Decidiu-se recrutar 400 diplomatas até 2008. ''A cada ano, é possível formar, no máximo, quarenta profissionais bem qualificados'', pondera um tarimbado embaixador. ''Remanejamentos criteriosos resolveriam o problema, que não está no número, e sim na má distribuição do quadro''. Mas a cúpula do Ministério tem pressa, e não parece disposta a desgastar-se com transferências abruptas. Preferiu partir para a formação de 100 profissionais por ano. Para tanto, afrouxou irresponsavelmente os critérios que regem o ingresso no Instituto Rio Branco.
Nesse caso figura a revogação, na prática, da prova de Inglês. ''Basta compreender o idioma'', alega Celso Amorim. Está mentindo deliberadamente. Ele sabe que os diplomatas são obrigados a escrever discursos em Inglês, redigir traduções de textos e notas, manter entendimentos pessoais com interlocutores estrangeiros, servir de intérprete das autoridades monoglotas e expressar-se naquele idioma nos organismos internacionais.
É sempre em Inglês, aliás, que Amorim tenta fazer-se entender nos encontros que o mantêm no exterior boa parte do ano. Tem viajado com muita freqüência. Primeiro, porque chanceleres viajam bastante. Depois, porque descobriu que incursões internacionais são um bom negócio. Nesses giros, usa o truque batizado de ''diária seca'' no jargão do Itamaraty. As embaixadas garantem cama e comida ao hóspede ilustre. O ministro embolsa a quantia reservada pelo governo a quem viaja a serviço da nação. No ano passado, as ''diárias secas'' reunidas por Amorim chegaram perto de 40 mil dólares. Livres de taxas e impostos.
Certos animais, como reafirmou o maremoto na Ásia, dispõem de misteriosos radares naturais que antecipam a ocorrência de tragédias cujos sinais chegam aos homens tarde demais. Talvez seja essa a explicação para o sumiço dos cisnes que adornavam o lago do prédio do Itamaraty no Rio. Os bichos adivinharam faz alguns anos o tamanho do desastre que começa a consumar-se.