Título: O estado-abutre
Autor: Ubiratan Iorio*
Fonte: Jornal do Brasil, 24/01/2005, Outras Opiniões, p. A12

O monstro parece comprazer-se em debilitar as forças dos que trabalham, minando-lhes as resistências e condenando-os ao empobrecimento

Todo mês de janeiro é a mesma coisa, para um povo em que qualidades inegáveis como a mansidão, a resignação e a conformação acabam voltando-se contra ele e tornando a sua vida um martírio. Qual aves de rapina que vislumbram, do alto de sua autoridade, imunidade e impunidade, a carniça - no caso, uma classe média emagrecida, descarnada e à míngua, de tanto ser explorada -, os municípios, os estados e o ''abutre-rei'', a União, atiram-se sobre ela com voracidade de fazer inveja aos leões e aos gladiadores que, no velho Coliseu, abatiam-se sobre os que, antes de morrerem devorados ou transpassados, eram obrigados a saudar o imperador de Roma. Pois é assim que, no Brasil, ano após ano, e com a voz cada vez mais abafada, a classe média parece dizer: ''Ave Ignatius Lula! Ave Rosa! Ave Caesar! Morituri te salutant''...

É o IPTU que, ano após ano, sempre com aumentos reais, devora os orçamentos já parcos e é o IPVA que, sem qualquer piedade, tira o sono das famílias que tiveram a petulância de trabalhar para ter um ou - infâmia das infâmias! - dois automóveis... Para onde vão os recursos do IPTU, se não servem adequadamente a quem os paga, os contribuintes? E os do IPVA, se a maioria de nossas estradas, a exemplo das do Rio de Janeiro, mais se assemelham àquelas fotos da superfície lunar, tamanhas são as crateras existentes?

O abutre federal, fantasiado de leão do Imposto de Renda, que costuma esperar até abril para abocanhar o seu naco dos rendimentos da pobre classe média, desta vez foi mais rápido do que os estaduais e municipais e, no apagar das luzes do ano recém-findo, atirou-se sem piedade sobre empresas prestadoras de serviços, mediante a Medida Provisória 232, de 30/12/2004, cujo objetivo não pode parecer outro, a não ser o de extingui-las. O monstro parece comprazer-se em debilitar lentamente as forças dos que trabalham, minando-lhes paulatinamente as resistências e condenando-os - sempre em nome de um ''social'' que lhe serve perfeitamente como escabeche para cada tunga - a um progressivo empobrecimento.

Vige - e nunca é demais lembrarmos! - no país um verdadeiro hospício tributário, com setenta impostos, taxas e contribuições, leis, decretos, portarias e medidas provisórias, com uma legislação tributária e trabalhista complexa e por si só fomentadora de corrupção, sonegação, informalidade e desemprego. Tal manicômio, em valores, beira os 40% do PIB e, se somarmos a isto os gastos com auto-proteção em que a classe média é obrigada a incorrer, por não confiar - com justíssima razão - nos serviços públicos para os quais compulsoriamente ''contribui'', tais como planos de saúde, previdência e mensalidades escolares privadas, além dos custos com a corrupção e os decorrentes da inadimplência, chegamos a um assombroso, vergonhoso e indecoroso total, que deve estar entre 65% e 70% do PIB. Isto significa, amigos, que o brasileiro de classe média, desde aquele que se formou com dificuldades e mantém o seu escritório ou consultório, passando pelos que tiveram uma família que se esforçou para dar-lhes uma boa formação, pelos próprios professores e profissionais liberais e chegando àquela mulher que, tendo espírito empresarial e poucos recursos, abriu um pequeno negócio, estão todos muito perto de trabalharem em um regime de trabalhos forçados.

Diante disso, revolta a qualquer cidadão com QI acima do de uma ameba a notícia de que, mais uma vez, a Receita bateu o recorde de arrecadação, que atingiu R$322 bilhões em 2004, superando em 10,6% o volume subtraído dos que trabalham e produzem obtido em 2003. E gera estranheza a fachada de ''boa notícia'' que muitos meios de comunicação emprestam a esse fato que, a bem da verdade, é lamentável, execrável e, cada vez mais, intolerável! Quanto desperdício!