Título: A guerra é a principal falha humana
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 16/01/2005, Outras Opiniões, p. A11
Estou em Washington às vésperas de duas importantes datas. Amanhã, 17, é o feriado em que se homenageia a memória de Martin Luther King Jr. No Kennedy Center e em praticamente todas as igrejas hoje e amanhã haverá sessões especiais e concertos maravilhosos recordando os ideais deste homem que, vivendo apenas 39 anos, deixou lições notáveis de como se deveria fazer para se transformar as injustiças e o que houvesse de errado em cada país e na terra, mas sempre se atendo aos meios pacíficos, e não à violência. E no dia 20, quinta-feira, haverá a posse do presidente George Bush, republicano reeleito com suficiente maioria depois de levar seu país a uma das guerras mais questionáveis tanto nos EUA quanto no mundo. A Guerra do Iraque, realizada para derrubar o regime ditatorial de Sadam Hussein e para evitar que seu governo utilizasse armas de destruição em massa e promovesse ações terroristas em outros países. Não foram achadas as armas de destruição e, segundo relatório da própria CIA, o Iraque tornou-se recentemente uma verdadeira escola de treinamento de terroristas. Lá os bombardeios não param, em que pesem e até por causa das eleições marcadas para 30 de janeiro.
Quando Martin Luther King instava o seu povo a não se acalmar, nem tomar a droga tranqüilizadora do gradualismo, uma vez que não se poderia esperar mais para tornarmos reais as promessas da democracia e nos levantarmos do vale escuro e desolado da segregação para o caminho do sol da justiça racial, ele tambem alertava: ''Mas há algo que eu preciso falar para o meu povo, que está no limiar caloroso que nos leva para o palácio da justiça. No processo de ganhar nosso lugar de direito nós não podemos ser culpados de ações erradas.
Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa luta no plano alto da dignidade e da disciplina. Não podemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física. Todas as vezes, e a cada vez, nós precisamos alcançar as alturas majestosas de confrontar a força física com a força da alma''.
Em A economia da fraude inocente - a verdade de nosso tempo (2004, Boston, New York, Houghton Mifflin Company), aos 96 anos, o brilhante economista John Kenneth Galbraith explica muitas das razões para que mesmo os mais distinguidos admiradores de Martin Luther King, como o próprio presidente Bush, que com certeza nesta semana irá lhe prestar homenagens, se esqueçam daquelas lições na hora de enviar seus aviões, navios e tropas com bombardeios mundo afora. Uma primeira fraude inocente, segundo Galbraith, é a maneira como mais e mais se resolveu dar ao capitalismo um nome mais ameno, o de sistema de mercado, para diminuir a conotação de poder que havia se dado ao dono do capital por Karl Marx, Friedrich Engels e seus seguidores. Não se costuma dizer mais que qualquer capitalista individual tem tanto poder, não se costuma ensinar que o mercado está sujeito a administradores muito habilidosos. Às vezes há a referência ao sistema corporativo, mas mesmo alusões ao poder das corporações costumam ser feitas com cuidado pelos amigos e beneficiários do sistema que assim preferem normalmente aludir ao mercado.
Outra fraude inocente analisada por Galbraith é a liberdade que hoje dispõe os executivos no topo das corporações de fixarem a sua própria remuneração. O poder das corporações está sobretudo em mãos de seus administradores, uma burocracia capaz de controlar as suas tarefas e os seus rendimentos, a ponto de se tornarem recentemente verdadeiros escândalos.
A outra fraude está na descrição dos chamados dois setores, o público e o privado. Pois, mais e mais, na prática o setor público tem se tornado tambem privado, especialmente no que diz respeito ao que ocorre no setor de defesa. Assim, analisa Galbraith, no ano fiscal de 2003, praticamente a metade do gasto não vinculado, isto é, não obrigatoriamente destinado à seguridade social ou ao pagamento da divida pública, foi usado para fins militares. Em grande parte, para desenvolvimento ou inovação de armas, como bilhões de dólares para submarinos nucleares, dezenas de milhões para aviões. Para que isso ocorra, há uma voz política organizada do setor privado ligado à industria de armas, algo que o ex-presidente Dwight D. Eisenhower, a mais notável figura militar do século 20, havia muito bem alertado ao falar do complexo industrial militar.
No próprio noticiário das guerras reportado pelo The New York Times, Galbraith detecta a forte presença das corporações em tantas atividades logísticas no campo de batalha. Algumas firmas ajudando o treinamento de tropas americanas e fornecendo munições, na denominada Operação Deserto, por exemplo. E assim descreve a realidade presente: ''No comando da guerra como na paz, o privado se torna o setor público''.
Como se pode observar no Iraque, os fatos da guerra são terríveis e inevitáveis: a morte e a crueldade espalhadas da forma mais arbitrária, a suspensão dos direitos civilizados e a desordem. Mais do que nunca é preciso reagir e mostrar que a condição humana é capaz de promover um outro caminho para se acabar com a pobreza e a fome de milhões de pessoas e resolver os problemas sociais. A guerra, conclui Galbraith, continua sendo uma decisiva falha humana.