Título: Relações perigosas
Autor: Paulo Nogueira Batista Jr.
Fonte: Jornal do Brasil, 21/01/2005, Opiniões, p. A11

As chances de sucesso do projeto sul-americano são boas. Mas não vamos nos iludir

Ontem, tomou posse em Washington o presidente reeleito, George W. Bush. Boa ocasião para refletir um pouco sobre as relações do Brasil com os Estados U nidos. Queiramos ou não, essa continuará sendo a dimensão crucial da política internacional do nosso país.

Sobre esse tema, uma leitura é indispensável: o livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira, As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a Lula, 1990-2004), lançado pela editora Civilização Brasileira no final do ano passado.

Essa obra não teve o destaque merecido. Não é de supreender. Moniz Bandeira escreve de um ponto de vista rigorosamente brasileiro. E, como dizia Nelson Rodrigues, ''o Brasil é muito impopular no Brasil''.

No período Collor-FHC, a política externa brasileira atravessou uma fase melancólica, em que predominaram posturas atemorizadas e subalternas. Fernando Collor, do alto da sua ignorância e despreparo, anunciou em visita a Washington, em 1991, o fim de uma ''fase amadorística (sic) e romântica'' nas relações do Brasil com os Estados Unidos. Deslumbrado provincianamente com a perspectiva de um mundo unipolar, Collor procurou acomodar o Brasil às diretrizes de Washington. Nada conseguiu com isso, observa Moniz Bandeira, a não ser alguns elogios (o presidente Bush, pai do atual presidente dos EUA, qualificou-o de ''líder moderno'' e ''presidente extraordinário''...).

Fernando Henrique Cardoso era mais sutil e sofisticado do que Fernando Collor, mas não foi essencialmente diferente no campo internacional. Apesar de algumas firulas retóricas, tratou de ajustar-se, na prática, aos interesses dos EUA, como mostra Moniz Bandeira. A marca do seu governo foi a resignação. Merece capítulo à parte, a gestão da vaporosa figura de Celso Lafer no Itamaraty. Moniz Bandeira apresenta um relato constrangedor e uma crítica arrasadora da passagem de Lafer pelo Ministério das Relações Exteriores, concluindo que por suas ''iniciativas e atitudes subservientes e servis'' em relação a Washington ele se configurou como ''o pior chanceler da história do Itamaraty''.

O jornalista Barbosa Lima Sobrinho costumava dizer que no Brasil sempre houve dois grandes partidos: o de Silvério dos Reis, que procura atrelar o país a interesses estrangeiros, e o de Tiradentes, que não transige com os interesses nacionais. Nos anos 90, o partido de Silvério dos Reis dominou amplamente. Mas o de Tiradentes não chegou a ser totalmente soterrado.

Desde o início da década de 90, um dos grandes desafios para o Brasil era a proposta dos Estados Unidos de criar uma Área de Livre Comércio das Américas. O Brasil não se sentia (como ainda não se sente) em condições de recusar abertamente essa proposta. Porém, o nosso interesse, lembra Moniz Bandeira, consistia em consolidar o Mercosul e constituir um ''segundo círculo concêntrico'' mediante a celebração de acordos de livre comércio do Mercosul com outros países sul-americanos. O processo desembocaria na formação de uma Área de Livre Comércio da América do Sul, que começou a ser impulsionada por Celso Amorim, chanceler durante o governo Itamar Franco. A sinalização era de duplo sentido, explicou Amorim em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, em 1997. De um lado, mostrava que o Mercosul não se esgotaria em si mesmo e constituía o núcleo de um processo maior de integração. De outro, reconhecia que a realidade para o Brasil não era tanto a América Latina, mas, sim, a América do Sul.

Este é o projeto que está sendo retomado agora no governo Lula. O partido de Tiradentes voltou a predominar no Itamaraty. E as condições são agora muito mais favoráveis do que no começo dos 90. Em diversos países, o fracasso das políticas econômicas liberais recomendadas pelo chamado Consenso de Washington favoreceu o ressurgimento da preocupação com a autonomia nacional e do interesse pela integração sul-americana. Além disso, a inabilidade do governo George W. Bush, a sua propensão a agir de forma unilateral e ultranacionalista, levaram a uma grande perda de prestígio dos Estados Unidos.

As chances de sucesso do projeto sul-americano são boas. Mas não vamos nos iludir. O partido de Silvério dos Reis é forte e ativo. E continuará fazendo muito barulho e muita pressão.

*Paulo Nogueira Batista Jr. (pnbjr@attglobal.net) é professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Artigo reproduzido da Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br).