O Estado de S. Paulo, n. 47920, 29/12/2024. Política, p. A6
Governo Lula registra o pior desempenho na aprovação de MPs
Hugo Henud
Das 126 MPs apresentadas, apenas 19 foram convertidas em lei. Taxa de aprovação é a menor desde 1988.
O terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva apresenta o pior desempenho na aprovação de medidas provisórias (MPs) nos dois primeiros anos de governo em relação aos seus antecessores. Das 126 MPs apresentadas, apenas 19 foram sancionadas e convertidas em lei, resultando em uma taxa de aprovação de 15,87% – a menor desde 1988. Os dados apontam desafios na articulação política do Executivo diante de um Legislativo fortalecido por mudanças institucionais recentes que limitaram os instrumentos de negociação disponíveis ao governo.
Procurada, a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência não se manifestou.
A MP é um instrumento utilizado pelo presidente para editar normas com força de lei em casos de relevância e urgência. Após sua publicação, passa a vigorar imediatamente, mas precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias para se tornar uma lei. Durante a tramitação, a MP é analisada por uma comissão mista (composta por deputados e senadores) e, se aprovada, segue para votação nos plenários da Câmara e do Senado. Caso não seja votada no prazo, perde a eficácia.
Em 2024, o governo Lula editou 74 MPs, das quais apenas oito foram convertidas em lei, resultando em uma taxa de sucesso de 10,08% – o índice pode crescer, dado que algumas dessas medidas estão em tramitação. Considerando os dois primeiros anos do atual mandato, a aprovação sobe para 15,87%, mas permanece abaixo dos índices registrados no mesmo período por Jair Bolsonaro (2019-2020), com 47,44%; Michel Temer (20162018), com 58%; Dilma Rousseff, com 82,72% no primeiro mandato (2011-2012) e 76,2% no segundo (2015-2016); pelos próprios governos anteriores de Lula, com 93,89% (20032004) e 86,36% (2007-2008); e Fernando Henrique Cardoso, 82,4% no segundo mandato (2001-2002), conforme dados da Coordenação de Relacionamento, Pesquisa e Informação do Centro de Documentação e Informação (Cedi) da Câmara.
FORÇAS. Na avaliação do professor de Ciência Política do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Vinicius Alves, a baixa conversão de medidas provisórias em lei reflete a mudança na correlação de forças entre Executivo e Legislativo impulsionada por alterações em mecanismos que fortaleciam o presidente e serviam de instrumento de negociação do governo, como as emendas parlamentares, que passaram a ser, em parte, impositivas – ou seja, de pagamento obrigatório.
“A relação entre Executivo e Legislativo hoje opera sob bases institucionais ainda mais desafiadoras para a cooperação entre os Poderes, sobretudo devido ao maior controle parlamentar sobre o orçamento discricionário da União. As emendas eram importante ‘moeda de troca’ usada pelo governo para aprovar projetos na Câmara, incluindo medidas provisórias. Com as emendas impositivas, essa ferramenta perdeu parte de sua eficácia como mecanismo de barganha política”, afirmou o professor.
Neste ano, por exemplo, o governo Lula enfrentou resistência quando o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), optou por devolver ao Executivo parte da MP que restringia o crédito de PIS/Cofins para empresas.
Apesar dessa situação, Alves ressaltou que a não conversão de MPs nem sempre é sinônimo de derrota. Em alguns casos, o conteúdo original é mantido ao ser incorporado a projetos de lei aprovados posteriormente, garantindo que parte dos objetivos do Executivo seja mantida. “Os interesses do Executivo e do Legislativo não são e não precisam ser necessariamente conflitantes.”
PRESSÃO. A cientista política Ana Regina Amaral, coordenadora da área de instituições políticas da Associação Brasileira de Ciência Política, observou que, até 2001, o presidente da República tinha ampla liberdade para editar e reeditar MPs sem limite para reedição, permitindo ao Executivo pressionar o Congresso indefinidamente pela aprovação dessas medidas. A dinâmica, na avaliação de Ana Regina, transformava o Congresso, na prática, em um mero chancelador das ações do Executivo.
Não por acaso, os presidentes, antes das alterações promovidas pelo Congresso, apresentavam altos índices de conversão de MPs em leis, como Fernando Henrique, no primeiro mandato (1995-1998), com 87,42%; Itamar Franco (1992-1994), com 86,59%; Fernando Collor (1990-1992), com 73,86%; e José Sarney (1985-1990), com 86,29%.
Contudo, a aprovação da Emenda Constitucional 32 alterou essa dinâmica, estabelecendo critérios mais rígidos, como o prazo de 120 dias para votação, após o qual a MP perde automaticamente a eficácia. Antes, as MPs podiam ser reeditadas indefinidamente, permanecendo válidas por longos períodos sem a necessidade de aprovação formal dos parlamentares, o que ampliava o poder do Executivo.
“A partir de então, o número de medidas que perderam eficácia dobrou a partir de Lula 2 e quadruplicou em Dilma 1. Enquanto a perda de eficácia de MPs representava 3% do total, passou para 25% em Dilma 1, 38% no governo Temer, 40% no governo Bolsonaro e chegou a 61% no governo Lula 3”, afirmou a cientista política.
Ela destacou ainda a introdução do “sobrestamento” da pauta, mecanismo que, após 45 dias da publicação de uma MP, tranca a votação de outros projetos, forçando o Congresso a priorizar sua análise. Inicialmente favorável ao Execu
“Agora, o presidente precisa negociar e ceder muito mais do que antes para garantir a aprovação de suas propostas. Tanto Lula quanto futuros presidentes enfrentarão dificuldades diante de um Congresso com maior controle sobre a agenda legislativa”
Lucio Rennó Cientista político
tivo, o sobrestamento gerou insatisfação no Legislativo, que, em 2009, restringiu seu impacto a matérias exclusivamente passíveis de regulação por MPs, como alterações tributárias e créditos extraordinários. A decisão liberou a tramitação de outras proposições, como projetos de lei, destinadas a criar ou modificar normas gerais, ampliando a autonomia do Legislativo, que passou a não ter mais a pauta trancada após o vencimento do prazo de votação de uma MP. “Antes, o governo tinha uma arma poderosa: o sobrestamento da pauta. Isso acabou.”
COMISSÃO MISTA. O cientista político Lucio Rennó, integrante do Laboratório de Pesquisa em Comportamento Político, Instituições e Políticas Públicas e professor de Ciência Política da UnB, ressaltou que a obrigatoriedade de análise das MPs por comissão mista trouxe uma mudança estrutural na dinâmica do processo de aprovação.
“Antes, as MPs eram enviadas diretamente aos plenários, o que tornava o processo mais ágil. A inclusão da comissão mista adicionou uma etapa de negociação que aumentou os desafios para o Executivo.” Ele ainda chamou atenção para outro ponto: a flexibilização das regras na pandemia, o que permitiu ao presidente da Câmara adiar a leitura da MP em plenário – condição necessária para que o prazo de 45 dias do sobrestamento comece a contar.
A medida, que não está prevista na Constituição, possibilita adiar indefinidamente o início da contagem do prazo, evitando o bloqueio da pauta e diminuindo a pressão sobre o Congresso para priorizar a análise das MPs. “A prática reforçou o poder do presidente da Câmara, já que, ao controlar o momento da leitura da MP, ele passa a influenciar a agenda legislativa. A prerrogativa transforma a leitura da MP em um poderoso instrumento de barganha política.”
Para Rennó, todas essas alterações no rito de tramitação das MPs restringiram esse instrumento presidencial. “Agora, o presidente precisa negociar e ceder muito mais para garantir a aprovação de propostas. O jogo mudou.” •