Título: O dólar e seu `sobrepeço¿
Autor: Daniel Faraco
Fonte: Jornal do Brasil, 16/02/2005, Opiniões, p. A11
Na formação da taxa cambial do dólar, há duas espécies de fatores a considerar. A primeira espécie é a dos fatores que lhe conferem poder de compra, pois o valor básico de toda moeda está nos bens e serviços que com ela se adquirem. Por tal motivo, quando os preços desses bens e serviços sobem, o valor cambial da moeda, no qual os preços se expressam, tende a baixar.
Não é o que atualmente está acontecendo com o dólar, de vez que os preços internos, nos Estados Unidos, são praticamente estáveis e a inflação tem andado pelos 2 a 3% ao ano.
Mas há uma segunda espécie de fatores que influem na taxa de câmbio da moeda e que se relacionam com a amplitude de sua aceitação, outorgando-lhe a função de reserva de valor e a de meio de pagamento de elevado índice de receptividade, dentro e fora do país de origem. Estes atributos se apóiam na credibilidade de que, no caso, desfruta a moeda americana e que têm determinantes históricos e políticos, além dos estritamente econômicos.
A credibilidade internacional, que atingiu seu grau máximo após a Segunda Grande Guerra, fez do dólar uma ''moeda franca'', que passou a desempenhar o papel preenchido, ao longo dos séculos, pela prata, e a seguir pelo ouro em grande parte dos séculos 19 e 20.
De tudo isso resultou que, ao preço básico, como poder de compra, foi acrescido ao valor do dólar, um ''sobrepreço'', oscilante com as variações da oferta e procura, relativas ao andamento do comércio entre as nações e às transações puramente monetárias, de transferências de fundos ou realização de arbitragem, e de eventual ação de especuladores.
A procura de dólares tem a alimentá-la os déficits estadunidenses, na área fiscal e no comércio exterior, déficits tradicionalmente financiados com a colocação de títulos de crédito do Tesouro, tomados pelos que, em todo o mundo, buscam aplicação segura de capitais. Entre esses financiadores, situam-se os bancos centrais, que constituem parte considerável de suas reservas em dólares.
Os crescentes e repetidos déficits, entretanto, vêm aumentando em alta escala a dívida nacional americana - que já ultrapassa os sete trilhões e meio de dólares - a ponto de despertar inquietações acerca da saúde financeira dos Estados Unidos. Não se configura a hipótese de um ''default'' ou de uma moratória, em moldes do ocorrido em países menos desenvolvidos, pois os Estados Unidos poderão, por largo tempo e se necessário, ampliar sua massa monetária para solver suas dívidas que, afinal, são em dólares. Contudo, o problema para os americanos reside em que, expandindo demasiado a circulação de sua moeda, poderão desatar um processo inflacionário, com múltiplas e perigosas repercussões.
O que está havendo, por enquanto, é a queima da gordura do ''sobrepreço'', queima que, se ainda não chegou à carne do poder de compra, deve andar chamuscando-lhe as imediações.
São observações úteis de ponderar, quando se está acoimando de sobrevalorizado o real, ao em vez de reconhecer que, de fato, desvalorizado está sendo o dólar.
Arriscadas são as profecias, notadamente em matéria econômica e financeira. Mas tudo indica que a queda persistente do dólar não é mero episódio de rápida e previsível reversão. Em termos de reais, bem provável é que, as recentes taxas, abaixo de R$ 2,70, estejam beirando o fundo do poço do poder de compra. Mas a par disso, é provável também que a cotação não volte tão cedo a níveis muito acima dos R$ 3,00, como em tempos passados.
Estará o dólar chegando ao fim de seu reinado como ''moeda global?'' Não parece plausível que isso ocorra, enquanto a economia americana continuar sendo um quarto da economia mundial. Todavia, o euro já se vem apresentando, nos domínios financeiros, senão como sucessor, sem dúvida como coadjuvante (ou rival).
O mundo - que já conheceu o bimetalismo ouro-prata - bem pode estar ingressando no bimonetarismo euro-dólar.
Daniel Faraco, ex-ministro da Indústria e Comércio e deputado constituinte em 1946 pelo Rio Grande do Sul