Título: Homem de Deus agora é do povo
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 16/04/2008, Internacional, p. A23

Assim disse o bispo". O ditado popular, interpretado como paradigma sociológico da cultura paraguaia, está próximo de entrar para a história política. Líder da oposição, o candidato presidencial Fernando Lugo é a personificação do "bispo dos pobres", figura que ilustra a força do padre na comunidade local, sustentada pela tríade padre, juiz e professora. Identificado com as causas populares e do compromisso social com os mais pobres, Lugo mantém-se há quatro meses na liderança das pesquisas de intenção de voto para o pleito de domingo. É, ainda, quem dispõe de melhor imagem. Em entrevista ao JB, o ex-bispo que lançou o imperialismo brasileiro como mote de sua campanha eleitoral considera um "pecado original" o fato de o Tratado de Itaipú ter sido assinado por dois ditadores. Pela primeira vez, pode-se falar de uma força política de traços esquerdistas com chances de ganhar as eleições no Paraguai. O fenômeno Lugo encaixa-se no atual contexto latino-americano das auto-intituladas revoluções populares. Há, entretanto, uma particularidade: Lugo não é um político histórico, como o boliviano Evo Morales e o venezuelano Hugo Chávez, que construíram suas lideranças na atividade política. Até cinco anos atrás, ele estava instalado em sua diocese no departamento de San Pedro, uma das regiões dos mais pobres do país, marcada por conflitos entre latifundiários. Esteve fora da política até ser convidado a ser orador em uma marcha contra o atual presidente, Nicanor Duarte Frutos, justamente porque não se queria que nenhum movimento fosse protagonista. Inevitável. Ali, a liderança popular de Lugo o lançou à política. Sua candidatura foi lançada pela Aliança Patriótica para a Mudança, uma união de diversos movimentos sociais recém surgidos a partidos políticos tradicionais ­ dentre eles o Partido Liberal, opositor histórico do governista Partido Colorado. Lugo renunciou ao cargo de bispo, mas a Igreja Católica não reconheceu. Pela Constituição paraguaia, portanto, não pode concorrer às eleições. Mas, a menos de uma semana do pleito, a lei é letra morta. Lugo conta com a vantagem de não ser produto do meio político, considerado corrompido. Na entrevista, promete que sua primeira medida no governo será abrir a "caixa negra do Estado". Representa a mudança radical e seu discurso transmite esperança, sintetiza o que reivindica o povo paraguaio cansado de viver sob o governo colorado há mais de 60 anos. O ex-bispo ­ que inseriu a esquerda na cena política paraguaia, historicamente marcada por partidos estadistas ­ angaria votos de todos as classes sociais, econômicas e regionais. É o candidato com base mais ampla e sólida destas eleições. Está seguro de que a chance de mudar o Paraguai é agora porque "a cidadania está disposta a não entregar seus votos". CAMPANHA ­ Crianças no palco reforçam a imagem de Lugo como um homem "de coração", como no jingle Camila Arêas

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Bastidor es Para quem foi padre, cuidar da imagem é a garantia de não ter de atirar a primeira pedra. Esta é a máxima que prima pelos corredores da base da Aliança Patriótica para a Mudança. O vazio que respira o galpão improvisado de sede contrasta com a periferia sem lei que reina do lado de fora. As portas abertas 24 horas convidam a um ambiente que se percebe político em apenas alguns poucos cartazes. Reduto de mais de cinco legendas unidas sob o mesmo nome, o local não distingue cores. Nem países. Há enviados do Brasil e da Venezuela diretamente para a assessoria de Lugo. A roupa simples do ex-bispo substitui a formalidade eclesiástica pela modéstia mundana. Mas a serenidade inabalável lhe dá um mistério quase divino. Apesar do discurso que invoca repetidamente princípios religiosos, a sinceridade que transmite é irretocável. "Padre não pode mentir", ilustra um de seus assessores, responsável por cuidar de sua imagem. A modéstia chega à infra-estrutura: falta gasolina para parte da equipe. Reduz-se a frota. No palco, Lugo é um milagre. Metafórica, sua oratória sabe como chegar ao povo e lhe arranca gritos. As crianças que se aventuram a subir ao palco ali ficam. Apesar de celibatário, Lugo tem de preservar a imagem de homem da família. Corre nos bastidores que diante da recusa da Igreja em reconhecer o abandono da batina foi proposto a Lugo que se casasse. Não foi para tanto.

Fui sacerdote por 30 anos e aprendi com a pobreza, a indigência e a miséria da gente, aprendi a não ficar tranqüilo frente à dor dos demais

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A Venezuela dá seu petróleo; o Chile seu cobre; a Bolívia seu gás, tudo a preço de mercado. O Paraguai é o único que dá energia a preço de custo

" O que levou um padre a tor- nar-se político? ­ Estive 30 anos como sacerdote e 11 anos como bispo, aprendi com a pobreza, a indigência e a miséria da gente, aprendi a não ficar tranqüilo frente à dor dos demais. Fiz de tudo para que as pessoas pudessem se recuperar, mas era insuficiente. Então, descobri que a política é a ferramenta para mudar esta situação. Além disso, o povo recolheu mais de 5 mil assinaturas me pedindo para que renunciasse ao exercício religioso e liderasse uma ampla coalizão política para realizar a genuína mudança que precisamos. Em meio aos outros políticos, você se sente diferente? ­ Não entramos na política para aceitar benefícios pessoais, nem econômicos, esta é a grande diferença. Fazer política no Paraguai é a maneira rápida de fazer fortuna e exercer influência. Não estamos aqui para isso, apostamos num país diferente. Pio XI disse que a política é a expressão mais sublime do amor. O político tem que amar profundamente. Quem não é capaz de dar a vida pelo povo não deve se meter em política. Sob estas condições, estamos dispostos a exercer o poder com caridade. Tendo em vista as acusações de fraude que seu partido vem levantando contra o governo, como vocês estão se preparando para o pleito de domingo? ­ O partido do governo, hege- mônico, tem uma experiência de 60 anos com eleições fraudulentas. Eles têm tudo a seu favor: a Justiça Eleitoral, a Corte Suprema de Justiça, além de todo o dinheiro do Estado. Mas estamos tranqüilos porque temos o que eles não têm, que é a vontade política da maioria do povo paraguaio, que aposta na mudança. Prevemos todos os possíveis métodos de fraude e montamos um sistema de contagem rápida de votos, melhor do que o da própria Justiça Eleitoral. E o povo não está disposto a desviar sua vontade política. Estas são as garantias de que o resultado de 20 de abril, desta vez, não será roubado da vontade popular. Se forem comprovadas evi- dências de fraude, que medida você tomará? Há espaço para uma grande reação popular? ­ Eu apostaria na racionalidade, no diálogo, nas organizações internacionais. Mas o que o povo paraguaio pode fazer é imprevisível. Uma coisa é sentar-se e discutir racionalmente os resultados eleitorais, outra é estar convencido de que aquele que ganhou foi apresentado como perdedor, o que já aconteceu em outras eleições nacionais. É o povo e a nação que estão em jogo, não somente a minha candidatura. A vitória é certa? ­ Estamos seguros que a mudança chegou. Antes dizíamos: "Algum dia o Paraguai há de se tornar nação respeitada entre outras nações". Temos a chance agora. Se chegar ao poder, quais serão suas primeiras medidas? ­ Vou tornar a administração pú- blica mais transparente, abrir a caixa negra do Estado, fazer com que cada cidadão conheça nossos gastos de gestão. Vamos colocar escritórios de denúncias de corrupção em todo o país. O Paraguai vai ser conhecido por sua honestidade e não pela corrupção, como agora. Como você se enquadraria no contexto latino de tendências esquerdistas? ­ Não posso ignorá-lo. Mas o Pa- raguai vai fazer o próprio processo, não vamos copiar ninguém, temos uma identidade própria, um processo político diferenciado. Situo-me dentro dos governos progressistas, em que devemos buscar soluções criativas para problemas que existem há muito tempo. A Aliança é uma grande coalizão, onde estão partidos que ideologicamente se identificam com a esquerda, outros com a direita e eu ficarei no centro como pilar ao redor do qual se constrói a unidade de critérios e princípios para se poder operar politicamente. Se houver rumor de racha na coalizão, vamos discutir racionalmente o que é o mais conveniente ao Paraguai. Nossa vantagem em relação ao partido de governo é que colocamos o país em primeiro lugar. Os cartazes pela rua dizem: "Salvemos o Partido Colorado". Nós dizemos: "Salvemos o país". Você levantou a questão da re- visão do Tratado de Itaipu e os outros candidatos a adotaram como mote de campanha. Agora, depois da conversa com Lula, qual é sua expectativa? ­ O tratado foi feito em tempos de ditadura, quando o povo não teve liberdade sequer de opinar e este foi um pecado original. O próprio tratado estabelece que, para revisá-lo, deve haver vontade de ambas as partes. Portanto, se o Brasil não tiver, vai ser difícil que pacificamente possamos resolver a questão. Mas há um tema urgente, é preciso mudar o preço de mercado da energia que o Brasil compra porque nenhum país do mundo dá seus recursos naturais a preço de custo. A Venezuela dá seu petróleo; o Chile seu cobre; a Bolívia seu gás, tudo a preço de mercado, e o Paraguai é o único que dá sua energia a preço de custo. Isto vai mudar. Lula se mostrou disposto a criar uma mesa técnica de conversação, independentemente de que nossas posições sejam contrapostas. Instalamos o tema no país há um ano e meio. Muitos desconheciam. Nós damos energia ao Brasil por US$ 2,8 e o Brasil vende à Argentina por mais de US$ 100. Há aí uma grande diferença. É racionalmente inaceitável. Como responde às acusações de que sua candidatura estaria sendo financiada por Hugo Chávez ou pelo governador do Paraná, Roberto Requião? ­ São parte da campanha suja promovida pelo oficialismo. Dizem que estive com as Farc, que participei de seqüestros, que desviei fundos de camponeses, que recebo dinheiro de Chávez, de Requião. Nenhuma destas informações é verdade.