Título: Ainda há tempo
Autor: Moreira Franco
Fonte: Jornal do Brasil, 25/01/2005, Outras Opiniões, p. A9

Joaquim Villalobos é um ex-chefe guerrilheiro salvadorenho, que se dedica a pensar a América Latina e os caminhos da esquerda nesses novos tempos. É lúcido quando diz que, em nosso continente, a derrota das práticas autoritárias da direita tornou possível o vicejar da democracia; e que a derrota do populismo de esquerda permitirá resolver o problema da pobreza. É corajoso, quando afirma que Cuba expressa o populismo de esquerda apresentado como revolução; e que o conflito instaurado na política latino-americana é entre Lula e Fidel e não, como chegaram a supor alguns analistas, entre Lula e Uribe, atual presidente da Colômbia.

A reflexão de Villalobos sobre os caminhos da mudança e do combate às desigualdades é, sem dúvida, inovadora. Até hoje, de modo geral, a contestação ao populismo no Brasil tem sido exercida por conservadores - os que acreditam que a riqueza deve crescer para depois dividir e os que praticaram a utopia autoritária.

Fernando Henrique Cardoso, nos oito anos de seu governo, fugiu à regra. Formulou uma nova política social, articulada em uma rede de proteção direcionada aos pobres e indigentes. Ao obrigar os beneficiados a dar uma contrapartida, retirou o caráter de ajuda gratuita, de esmola. Deu essa orientação à estruturação, execução e acompanhamento dos programas e tomou a si a responsabilidade de travar o debate ideológico. Atacou o quanto pôde, em seus discursos, o populismo e suas conseqüências: o assistencialismo, o clientelismo e o fisiologismo.

Mas Fernando Henrique não conseguiu dar consistência política a seus propósitos. O sucesso dos programas sociais, os números dos avanços obtidos, os prêmios internacionais conquistados, não foram percebidos pela opinião pública como o êxito do oposto da visão populista.

No governo Lula, as políticas sociais - consideradas a mais importante marca diferenciadora das administrações petistas - foram inicialmente comandadas por Benedita da Silva e logo tropeçaram no fisiologismo mais banal: uma passagem aérea de ida e volta e uma estada em Buenos Aires, privilégio ministerial mal explicado. As mudanças que se seguiram só acrescentaram confusão, desentendimento e descontrole.

Com as eleições municipais o clientelismo se impôs. A senha para trânsito livre à manipulação eleitoreira na área social foi dada pelo governo federal quando autorizou a desconsideração de qualquer critério seletivo para a distribuição dos benefícios do Bolsa Família. Sem a obrigatoriedade de seguir um cadastro para definir o público beneficiado, os executores sentiram-se desimpedidos e até estimulados a usar os bens distribuídos como instrumento de troca.

Porteira aberta, todos entraram. Programas federais, estaduais e municipais foram objetos de conquista do voto e do trabalho de uma população cada vez mais embrutecida pela pobreza e pela indigência. Com o fracasso do Fome Zero, passaram a se valer do vale-gás, bolsa-família, cheque-cidadão, cestas básicas, bolsa-escola, para citar só alguns dos benefícios distribuídos em troca do voto e do apoio eleitoral. É claro que esses expedientes foram usados em alguns lugares mais do que em outros. Mas, onde o PT disputava o pleito com chances de vitória, esta postura foi assumida sem comedimento.

Villalobos cometeu o mesmo equívoco da maioria do eleitorado brasileiro: acreditou que o presidente Lula e o seu partido fossem capazes de liderar um processo de ruptura com a demagogia das práticas populistas. Estava convencido de que Lula no governo seria o mesmo Lula da campanha. Só que, da campanha, Lula cumpre unicamente a opção pela responsabilidade fiscal expressa na Carta aos Brasileiros.

Se a vitória eleitoral e a política do presidente Lula permitiram o questionamento de toda a ação governamental de FHC; no campo dos programas sociais, houve retrocesso ao populismo, adesão às facilidades do fisiologismo, modernização do assistencialismo. Enfim, nada sobrou.

Churchill dizia que a desilusão é a sombra da vitória. As pesquisas de opinião mostram que este não é o sentimento da população, que ela ainda não percebeu a inconsistência do que tem sido realizado na área social. Se o governo não promover mudanças de rumo, só restará a certeza da opinião pública de que os nossos governantes e políticos, para continuar mandando, são capazes de tudo. Um saldo muito negativo para um povo que gosta de democracia e de eleição, e que já não suporta mais as mazelas sociais com que convive.