Título: Maioridade do estatuto
Autor: Darlan, Siro
Fonte: Jornal do Brasil, 14/04/2008, Opinião, p. A9

No dia 13 de julho o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/90, completará 18 anos de publicação e, 90 dias depois, de vigência. Em meio a muitas críticas e reações adversas ainda não está sendo respeitado em sua plenitude, embora já se possam festejar algumas mudanças. Essas conquistas ainda que discretas devem-se ao debate que tem sido sustentado na mídia e nos mais diversos fóruns de governo e da sociedade civil. A implantação dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos de Direito tem contribuído para manter o debate sobre a necessidade de priorização da criança no orçamento e nas políticas públicas nas três esferas administrativas.

Tive a felicidade de assumir a titularidade da Vara da Infância e da Juventude em 1991, logo após a entrada em vigor dessa lei que ainda encontra tanta resistência porque propõe à sociedade um novo tratamento de inclusão no rol de cidadãos plenos crianças e adolescentes sem distinção de cor, classe social ou origem. Foi um longo e tortuoso caminho percorrido que deixou marcas dos dois lados. Implantar a lei que traz uma proposta tão ousada encontra resistências, sobretudo numa sociedade marcada por enormes diferenças sociais e econômicas.

Por um lado o legislador propôs uma distribuição equitativa de direitos afirmando nossa Carta que devem as crianças ser prioridade absoluta na garantia de seus direitos fundamentais. Por outro, parte da sociedade agarrada aos seus instintos egoístas pretende a manutenção dos privilégios que permite que poucos se mantenham diferenciados dos demais numa distância alarmante entre os poucos que tudo têm e os muitos que nada possuem.

A implantação do ECA implica necessariamente em distribuição de rendas e direitos iguais para todas as crianças. Recentemente o Ministério de Educação publicou a lista dos colégios que se destacaram no ensino. Os três melhores são do Rio de Janeiro.

Embora não tenha sido divulgado, é bem possível que também os três piores estejam no Rio de Janeiro. A Rocinha vive de frente para São Conrado, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo entre Copacabana e Ipanema. Essa disposição arquitetônica da Cidade Maravilhosa poderia ser um fator de integração social, ao contrário serve como motivo de beligerância permanente e o motivo é o egoísmo que marca o procedimento social de alguns segmentos sociais.

O ECA tem sido tratado com desprezo por alguns governantes que não o respeitam impunemente e por parcela da sociedade que deseja sua revisão sem nunca tê-lo posto em prática. É preciso dar uma chance à democratização dos direitos começando pelo respeito aos direitos das crianças. Se tratarmos as crianças com o respeito que lhes são devidos crescerão e serão adultos respeitadores, se continuamos tratando com tanta violência receberemos de volta com as correções devidas.

Nessa caminhada na busca da cidadania das crianças mais excluídas, já disse isso em meu discurso de posse no Tribunal de Justiça, enfrentei muito percalços e dificuldades.

Para alguns era um juiz polêmico porque queria que a lei fosse aplicada e não admitia que os adolescentes pudessem ser internados por haverem descumprido a lei, enquanto os governos que também descumpriam a mesma lei continuam impunemente descumprindo a norma constitucional. Para outros, um exibicionista porque exigia o respeito à lei independente do poder econômico ou social das partes interessadas.

Assim, foi exigido que uma grande empresa de comunicação respeitasse as crianças que parti cipavam de novelas, foi exigido que mocinhas precocemente exploradas no mundo das passarelas estivessem estudando, foi exigido que grandes casas de espetáculos respeitassem a classificação etária e zelassem pelo desenvolvimento sadio de crianças e isso significa contrariar interesses poderosos.

A resposta não tardou a vir. Foram 48 representações administrativas, duas tentativas de remoção compulsória, duas advertências e uma censura. Os algozes foram os representantes da resistência conservadora e reacionária dos mais diversos matizes, são aqueles que não desejavam a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas mesmo assim acredito que valeu a pena e as pedras que foram lançadas durante essa caminhada serviram para sedimentar o caminho e cada representação significava uma medalha de bom procedimento.

Anos depois de deixar a titularidade da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso ainda alguns inconformados insistem em suas ações intimidatórias e a todas tenho procedido com respostas na forma da lei. Assim é que, após ter sido ofendido por cinco profissionais do direito, com os quais convivi no árduo trabalho da justiça infanto-juvenil, busquei e obtive a reparação judicial nos tribunais competentes.

Assim como Daniel saiu ileso da cova dos leões, pelo mesmo motivo estou aqui para contar a história e muitas outras ainda serão contadas até que nesse país se possa comemorar o dia em que criança será tratada efetivamente como criança cidadão e os adolescentes tenham seus direitos igualmente respeitados.