Título: Como se brinca com mil vidas
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 25/04/2008, Opinião, p. A8

A Câmara dos Deputados, produziu, esta semana, mais um exemplo de seus delírios dissonantes daquilo que se espera de um Parlamento confiável. Vergonhosamente, rendeu-se ao poderoso lobby da indústria de bebidas, que acasalado aos interesses de emissoras de rádio e TV, busca impedir qualquer decisão disposta a limitar a propaganda nos meios eletrônicos.

Parlamentares ignoraram o clamor da opinião pública contra a insensatez de beira de estrada e suspenderam a proibição da venda de bebidas alcoólicas em uma área absolutamente perigosa, as proximidades das rodovias federais. Fizeram tamanho disparate, por coincidência, no mesmo dia em que a Polícia Rodoviária divulgava que 97 pessoas morreram 1.214 ficaram feridas em 1.863 acidentes de trânsito nas estradas registrados no último feriadão. Dispensável dizer que motoristas embriagados foram os principais responsáveis pelos números perturbadores.

Muitos dos deputados que apoiaram a derrubada do projeto de lei e da medida provisória que tratavam dos dois assuntos ¿ a propaganda e a venda ¿ foram incapazes de, a seguir, explicar por que se voltaram contra as medidas do Palácio do Planalto e aderiram à festa do álcool. O país ficou sem saber a razão da mudança, especialmente daqueles que integram a base de apoio ao governo. Mas é possível imaginar o porquê. A maioria, isto sim, deixou-se levar pelo canto da sereia de um importante segmento da economia, que só em publicidade gasta entre R$ 800 milhões e R$ 900 milhões anuais. E que, seguramente, é um grande apoiador de campanhas eleitorais, como a deste ano.

Estimativa realizada pela Associação Nacional de Transportes Públicos mostra que os acidentes de trânsito produzem um custo anual de R$ 28 bilhões. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), por sua vez, calcula em R$ 5,3 bilhões o custo específico para a assistência às vítimas.

Nada disso parece ter sido levado em conta. Optou-se pelos musculosos dividendos das bebidas em troca do passeio que a morte faz pelas rodovias, enlutando, dia a dia, centenas de famílias. Neste grupo talvez ainda haja remanescentes das mentes delirantes que, em passado recente, inventaram o kit de primeiros socorros, que passou a ser de uso tão obrigatório em qualquer veículo quanto a buzina ou o motor. Alguém colocou no bolso uma fortuna considerável, o kit não sobreviveu a um verão, ninguém foi preso e não se fala mais nisso.

Naquele caso, não houve mortes. Na situação atual, mais esta estripulia do Parlamento pode trazer conseqüências nefastas. A propaganda indiscriminada no rádio e na TV, qualquer estudo sério aponta, é responsável pelo fato de que, no Brasil, os jovens começam a beber cada vez com menos idade. Em relação à proibição da venda de bebidas nas estradas, o índice de acidentes diminuiu nos locais onde foi implantado. Em São Paulo, a "lei seca" existe há mais de uma década, com resultados animadores. Pelo visto, os deputados perderam o juízo. Mais uma vez.