Título: Ética e Lei: aborto e o direito das mulheres
Autor: Pitanguy, Jacqueline
Fonte: Jornal do Brasil, 03/05/2008, Vida, p. A24

A introdução da perspectiva de direitos sexuais e reprodutivos no campo da saúde reprodutiva, no qual se insere a questão do abortamento e a valorização da mulher como sujeito de direitos plenos, trouxe novos horizontes e desafios para o debate sobre o aborto.

Na Conferência Mundial de População e Desenvolvimento das Nações Unidas, realizada no Cairo, em 1994, o governo brasileiro, de acordo com a nossa Constituição, reconheceu que os direitos reprodutivos se ancoram no respeito ao direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos. Nesta mesma conferência, o aborto foi discutido como uma questão de saúde pública, afastando-se a perspectiva criminalizante. Em 1995, o Brasil subscreveu a Declaração de Pequim, adotada pela 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, comprometendo-se a considerar a revisão de leis contendo medidas punitivas contra mulheres que tivessem feito abortos ilegais.

Tendo nosso governo assumido claramente, no âmbito das Nações Unidas, posição contrária à penalização das mulheres que, por circunstâncias diversas e sempre difíceis, submetem-se a um aborto, parece incongruente o ímpeto punitivo de que foram acometidas autoridades de Campo Grande, onde, a partir de denúncias de um promotor estadual acolhidas por um juiz, 10 mil mulheres que freqüentaram determinada clínica de planejamento familiar respondem a inquérito policial por suspeita de prática de aborto. Diante deste fato inusitado e único na História do Brasil ¿ e talvez só comparável a impiedosa perseguição às mulheres que praticassem o aborto instaurada pelo ditador Ceausescu, da Romênia ¿ cabem algumas reflexões.

A primeira diz respeito à relação entre lei e ética. Temos no Brasil uma legislação bastante severa com relação ao abortamento, que só não é criminalizado em duas circunstâncias: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e no caso de gravidez resultante de estupro. Algumas vezes a ética e a lei coincidem e outras vezes se contradizem. O exercício de uma ação legal não é necessariamente ético. Assim, uma política de Estado não pode ser eticamente justificada apenas por sua legalidade. Se, no sentido estrito da lei, o aborto é um crime, cabe perguntar se é ético prender uma mulher porque ela, em um momento de sua vida, cometeu um aborto. Pesquisa recente revela que cerca de 75% das mulheres que abortam são casadas, já são mães, trabalham fora e tomam esta difícil decisão em acordo com o parceiro.

A segunda reflexão refere-se ao direito à saúde. Estima-se que no Brasil sejam realizados em torno de 1,5 milhão de abortamentos por ano, uma das principais causas da mortalidade materna porque, sendo clandestinos, são, em sua maioria, realizados em condições inseguras.

O reconhecimento do direito das mulheres realizarem escolhas em sua vida reprodutiva, assim como do fato de que, quando realizado em condições inseguras, o aborto constitui grave problema de saúde pública, alçou o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez a um novo patamar ético cujo desenrolar, esperamos, poderá trazer mudanças na legislação brasileira, ampliando as circunstâncias em que esta será uma prática legal, incidindo na política de saúde relativa a interrupção voluntária da gravidez, que, realizada em uma sociedade secular e plural como a nossa, seja guiada pelos princípios éticos de respeito pelas pessoas e da beneficência.