Título: O legado de 68
Autor: Dirceu, José
Fonte: Jornal do Brasil, 08/05/2008, Opinião, p. A9

No momento em que paramos para refletir sobre o ano de 68, é preciso olharmos além das imagens e símbolos e da memória daquele ano mítico, e indagar qual é o seu verdadeiro legado. Seria a luta contra a ditadura e pela democracia ¿ reconquistada 20 anos depois, na primeira eleição direta para presidente ¿ ou seriam os ensinamentos e compromissos com os processos democráticos, surgidos com o fracasso da luta armada, que envolveu toda uma geração que deu o melhor de si, empenhada na criação de um mundo mais justo?

Na verdade, 68 representou a primeira explosão de um Brasil que nascia, contrapondo o autoritarismo e o conservadorismo, heranças de nossa sociedade agroexportadora e liberal, e resistindo às idéias de Tradição, Família e Propriedade (TFP), que tanto se opuseram à rebeldia dos anos 60 e sua força arrebatadora que arrastava, em todo mundo, milhões de jovens a desafiarem tradições e normas culturais e sociais pré-estabelecidas.

A memória de 68 não pode ficar só na luta contra a ditadura, e os efeitos devastadores do AI-5. Seria perder a dimensão histórica de um movimento que sacudiu o mundo e o Brasil. 68 é o Cinema Novo, o Teatro de Arena, o Tusp e o Tuca, é a música popular brasileira, a nova literatura, e uma revolução gráfica nas artes plásticas que se anunciava. 68 é, também, a libertação da mulher, a pílula, o fim do autoritarismo familiar, a liberdade sexual, o acesso ao estudo e ao trabalho, um novo tempo de promessas de igualdade, de respeito, e de crise do machismo.

É o ano que simboliza bem o "é proibido proibir". Todos os dogmas puderam ser questionados: na arte, na política, na família e na sociedade, em sua organização e hierarquia. Surge uma esquerda que lê, debate e discute, e uma nova forma de fazer política. Retoma-se a agenda do Brasil, da sua cultura e desenvolvimento, da defesa de sua universidade pública, da pesquisa técnico-científica, é a hora de reformar a educação, de paritariamente professores e alunos criarem uma nova universidade.

Na luta política contra a ditadura, 68 é a disputa pelo espaço das ruas e praças do país; é enfrentar a censura, a repressão e o crescente autoritarismo, que eliminava a eleição direta para presidente e governador, extinguia os partidos políticos e proibia tudo ¿ o sindicato, a greve, o direito de manifestação e de informação. Mas 68 é também o mundo, a luta contra a guerra do Vietnã, a solidariedade à Cuba, o apoio à luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, a oposição à invasão da Tchecoslováquia, o maio francês e a lembrança da queda do Che na Bolívia.

68 é o motor que impulsionou a roda da história, que estava travada por forças conservadoras e autoritárias, e fez o mundo mudar, mesmo quando, formalmente, isso não acontecia. Nem nós tomamos o poder no Brasil, nem os estudantes derrubaram a república na França. Mas a semente de 68 frutificou, e dela nasceu um mundo melhor. A forma de fazer política nunca mais foi a mesma. A esquerda mudou e abriu-se, ficou plural e mais democrática. Provou-se que era possível enfrentar o poder, mesmo sendo derrotado.

Outros vieram, outras gerações e outros sonhos, e a roda da História continuou. Na verdade, 68 não acabou mesmo. O que precisamos é retomar seu espírito de luta, agora, em defesa da universidade, que deve se colocar no centro do debate e da vida nacional, como consciência crítica da nação e do projeto de desenvolvimento. Precisamos de um novo 68 na vida política do país, para fazer a reforma política e subverter as atuais estruturas arcaicas e comprometidas do sistema político-eleitoral; um novo 68 também para democratizar a mídia, e regular seu crescente poder, que se impõe à própria República e à democracia. Um 68 libertário, que detenha a sanha conservadora e moralista que círculos religiosos e do Judiciário, com apoio de parte da mídia, vão insinuando na vida laica e republicana do país em uma retomada do conservadorismo e de uma moral que julgávamos enterrada.