Valor Econômico, 05/05/2020, Legislação & Tributos, p. E2

O adiamento da LGPD
Felipe Palhares


O ano de 2020 tinha tudo para ser o ano da proteção de dados no Brasil, considerando a expectativa da entrada em vigor, em agosto, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), depois de 24 meses de vacatio legis. Pela primeira vez, o Brasil passaria a ter uma legislação compreensiva sobre o tema, aplicável a todos os setores da economia, tanto a órgãos públicos quanto a empresas privadas, colocando o país no mapa das mais de 130 nações que já possuem leis específicas sobre o assunto. Essa expectativa, no entanto, deve ficar suspensa por mais tempo.

Nos últimos meses, diversos projetos de lei surgiram no intuito de postergar a data da entrada em vigor da LGPD ou de postergar a possibilidade da aplicação das sanções administrativas previstas na lei por um determinado período. Até então, nenhum deles parecia ter grandes chances de aprovação, considerando o rito necessário do processo legislativo, a falta de apoio político expressivo e a proximidade do dia 16 de agosto. A inesperada pandemia da covid-19, que já mudou radicalmente a realidade empresarial no Brasil, tende a ser um divisor de águas também nesse ponto.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) nº 1.179/2020, que, em sua redação atual, propõe alterar a data da entrada em vigor da LGPD para o dia 1º de janeiro de 2021, bem como postergar a data da possibilidade de aplicação das sanções administrativas previstas na lei para o dia 1º de agosto de 2021.

A proposta chega a ser comedida em comparação aos demais projetos de lei que almejavam prorrogar a legislação, ou suas penalidades, por um período de dois anos, e já possui mais tração política, especialmente por estar inclusa dentro de um projeto que cria diversas regras específicas para o período de enfrentamento do coronavírus, alterando não só a entrada em vigor da LGPD, mas também outros preceitos legais. Não é à toa que ela foi rapidamente aprovada pelo Senado e agora aguarda a apreciação da Câmara dos Deputados.

Mas, nessas horas, o Brasil comprova que não é para amadores. No dia 29 de abril, de forma inesperada, o presidente da República editou a Medida Provisória nº 959, determinando a prorrogação da LGPD para 3 de maio de 2021. A MP é claramente inapropriada por duas grandes razões: a medida fala quase que exclusivamente sobre o pagamento do Benefício Emergencial e, no seu penúltimo artigo, do nada estabelece a prorrogação da LGPD, misturando temas inteiramente desconexos; o segundo motivo é que, ao menos por ora não havia qualquer necessidade para a alteração da data de vigência da LGPD, uma vez que o PL 1179 está em vias de ser votado pela Câmara dos Deputados e já prevê mudanças nas datas de

Os requisitos constitucionais de urgência e relevância sequer estariam presentes para a edição de uma MP neste momento. Qual é a urgência ou relevância em se postergar a LGPD quando o Congresso Nacional já está prestes a fazê-lo?

O momento da edição da MP 959 é no mínimo curioso. Ao que tudo indica, o PL 1179 tem grandes chances de ser aprovado na Câmara, o que inevitavelmente resultará no adiamento da LGPD, ainda que o prazo de prorrogação seja incerto. Caso a prorrogação fosse aprovada na forma da redação atual do referido PL, postergando a LGPD para o dia 1º de janeiro de 2021, o presidente poderia aguardar até dezembro de 2020 para eventualmente editar uma medida provisória na hipótese de entender necessário um novo adiamento. Antecipar-se à votação do PL 1179, desde já determinando um adiamento à lei, parece não fazer qualquer sentido, a não ser que já exista algum acerto parlamentar sobre o texto da MP ou que haja algum interesse em outras mudanças na letra da lei.

Com efeito, a MP 959 tem tudo para desfigurar a LGPD, possivelmente mudando a redação atual da lei de modo abrupto. Isso porque o tema da proteção de dados pessoais nunca esteve tão em voga quanto no atual cenário. Basta observar que a MP 869/2018 (que inicialmente prorrogou a vigência da LGPD) recebeu 176 emendas quando foi apreciada pelo Congresso Nacional, enquanto a recente MP 954 (sobre o compartilhamento de dados com empresas de telefonia para a realização de pesquisas pelo IBGE) recebeu 344 emendas. Nessa linha, caso siga o exemplo das outras medidas provisórias sobre proteção de dados, a MP 959 abrirá a caixa de pandora para centenas de emendas parlamentares, que podem resultar em novas mudanças drásticas e inesperadas na legislação.

O adiamento da lei tem consequências nefastas: coloca o Brasil em descrédito no nível internacional, impede o ingresso do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), diminui a competitividade do país, entre outros. Além disso, em tempos nos quais medidas de monitoramento ostensivo estão sendo adotadas em todo o mundo para acompanhar o desenvolvimento do vírus, ter uma legislação de proteção de dados em vigor seria fundamental para garantir o equilíbrio entre o interesse público e a privacidade dos cidadãos.

Ainda assim, não há como negar que o cenário mudou radicalmente em razão dos acontecimentos recentes e dos efeitos que serão sentidos no futuro. Neste novo contexto, e especialmente diante da ausência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), não obstante as consequências negativas do adiamento, a prorrogação da entrada em vigor da LGPD parece inevitável. A lei será jogada para o futuro, mas os efeitos prejudiciais dessa medida serão sentidos desde já.

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