Título: O que se passa nesta cabeça...
Autor: Balocco, André
Fonte: Jornal do Brasil, 11/05/2008, Cidade, p. A14

O que se passa nesta cabeça...

Em entrevista exclusiva, Beltrame avisa que não vai conseguir acabar com violência

O cenário, na chegada, é um tanto quanto sombrio. Em meio à desordem urbana que salta aos olhos misturando camelôs, prostitutas, menores infratores e policiais, a Central do Brasil surge imponente. Lá dentro está um dos homens mais poderosos do Estado: José Mariano Beltrame. Como todo bom gaúcho, este sulista, nascido em Santa Maria, não dispensa o chimarrão: basta uma rápida passada de olhos por sua mesa de madeira de lei que lá estão a cuia, a bomba e a erva, escondidos sob a bolsa verde com os dizeres `Chimarrão, símbolo de solidariedade¿.

¿ Adoro a erva ¿ diz, sem esconder o característico sotaque carregado de quem nasceu no Rio Grande.

Um pouco mais à esquerda, no impecável gabinete, está a miniatura de um caveirão, blindado muito utilizado pela Polícia Militar para penetrar nas favelas dominadas pelo poder paralelo. Foi neste cenário que o Jornal do Brasil entrevistou, com exclusividade, aquele que é um dos mais importantes pilares da política do governo Cabral.

Vencendo a desconfiança

De um início nervoso por conta da expectativa de mais um bombardeio de críticas, a conversa passou a fluir com naturalidade. Talvez a primeira pergunta tenha sido determinante para que a cordialidade se estabelecesse:

¿ Antes de tudo, secretário, gostaria de saber se o senhor é candidato a algum cargo na próxima eleição ¿ perguntei.

A resposta veio rápida como os estragos que a polícia vem fazendo no crime organizado, segundo os números apresentados pelo Instituto de Segurança Pública.

¿ De maneira alguma. Não tenho qualquer pretensão política ¿ avisou.

Daí para a frente o tempo passou mais rápido do que se imaginava. Em pouco mais de 70 minutos de conversa, interrompida apenas uma vez para que passasse ao governador Sérgio Cabral detalhes da operação policial no Leme, que terminou com dois presos na quarta-feira, o homem que apostou na política de confronto com o tráfico se abriu. O orgulho pelo aumento de apreensão de armas pesadas e drogas, desde que assumiu a secretaria, em janeiro do ano passado, está estampado no rosto do policial federal formado na turma de 1981 que, revela, sente saudade do front.

¿ Era muito bom ir para o combate ¿ conta.

Na conversa, foram vários os assuntos. Descriminalização das drogas, uso de tecnologia militar pelo tráfico para reconstruir armamentos, a importância da inteligência no combate ao crime, a oportunidade histórica que o Estado tem para começar a recuperar o déficit social através do PAC nas favelas, o reconhecimento de que os policiais militares do Rio recebem um salário parco... Mas as revelações não param por aqui. Beltrame conta ainda que vai receber 500 fuzis FAL da Marinha brasileira, que 300 câmeras inteligentes, herança dos Jogos Pan-Americanos, estão encaixotadas em algum ponto da cidade por conta da burocracia, faz críticas à constante troca de secretários nacionais de segurança em Brasília e revela, com incrível segurança: a violência não vai acabar na sua administração.

¿ A polícia, hoje, enxuga gelo. Temos de estar sempre fazendo um trabalho de contenção para evitar a expansão da criminalidade. Por isso as obras do PAC são tão importantes para complementar este trabalho.

Então, vamos ao que interessa. A seguir, na página ao lado, a entrevista na íntegra que revela o que pensa José Mariano Beltrame, ou simplesmente Beltrame, sobre os problemas que afligem a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Um Rio que ele adotou como seu e aprendeu a amar.

Fala, Beltrame

Novos fuzis

A Marinha está nos cedendo 500 fuzis em lotes intercalados. A PM e a Polícia Civil necessitam deste armamento. Recebemos fuzis FAL 762 revisados, com mil carregadores e 100 vão para a Polícia Civil. Temos bons fuzis apreendidos, como o AK-47 (arma russa), mas há dificuldade para adquirir munição. É uma arma boa, leve, que mais se adapta aqui, mas tem a burocracia.

Armas com civis

A posse deve ser para quem tem necessidade de utilizá-la e isso recai no uso militar. Portanto, para o cidadão, não é bom ter uma.

Tráfico e Exército

O que posso dizer é que determinados equipamentos e explosivos apreendidos, além de armas, têm sido feitos por pessoas com conhecimento em manutenção e recuperação de armamento. E esta técnica não está disponível no mercado. Isso nos concorre a achar que há participação no tráfico. No Pavãozinho, semana passada, apreendemos explosivos que poderiam ser detonados à distância, por controle remoto. Isso não é coisa de amador, não se aprende na esquina.

Menores no crime

É uma situação que nos preocupa, o menor que não tem perspectiva. Ele não tem colégio em tempo integral, uma boa orientação e o que circunda a área onde mora, muitas vezes, não é positivo. Há ainda a família desagregada... Então ele acaba sendo uma presa fácil para o tráfico. Se ele ficar numa laje recebendo R$ 20, no fim do mês vai ganhar mais do que o pai ou a mãe. Esta falta de perspectiva é um problema crucial.

Violência sem fim

Acho que sem dúvida nenhuma a polícia acaba fazendo um trabalho de `enxugar gelo¿. Ela transparece esta sensação, mas é preciso entender que hoje estamos procurando evitar que isto se alastre. Se pararmos de `enxugar gelo¿, isto vai crescer muito. Tenho convicção de que a violência não vai terminar na minha gestão nem na do próximo secretário. É um processo de recuperação de cultura, de geração de emprego, de renda.

PAC contra o crime

Acho que o Rio tem historicamente uma grande possibilidade, que é o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) e o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania). Podem dizer `não, são planos audaciosos, não vai dar certo`, mas o caminho é este porque recuperam a cidadania. Isto é para, no mínimo, 10 anos. Não há solução a curto prazo.

Política de segurança

Temos informações de que o tráfico hoje passa por dificuldade financeira e de articulação. Os soldados do tráfico já estão pensando duas vezes antes de se exporem guardando um paiol ou fazendo a segurança da droga. Antes, o fuzil era uma arma difícil de aparecer como apreendida. A metralhadora .30, por exemplo: em seis meses pegamos 12, enquanto nos últimos quatro anos foram só duas, se não me engano.

O uso da Inteligência

Não vamos entrar nas favelas sem objetivo, tipo pegar 100 policiais e entrar lá, porque pode acontecer o banho de sangue. Então, depois das ações de inteligência, vamos em busca das pessoas já sabendo onde elas estão e o que têm. Isto aconteceu no Leme. Muitos perguntam: porque o senhor não faz uma operação em tal lugar? Eu digo: não faço nada sem informação concreta porque ela permite que eu planeje, que diminuia a possibilidade de um fato ruim acontecer. O trabalho de inteligência estava desarticulado quando chegamos e hoje estamos muito afinados. A PF nos dá um apoio bom também. Posso dizer que a integração entre as polícias começa com a inteligência.

Inércia do Estado

Este problema da violência, hoje, está complexo porque existia uma inércia do Estado por 30 anos. Por isto o tráfico adquiriu esta gordura criminosa, por inépcia e inércia do Estado. Chegamos numa encruzilhada. Temos de decidir isto.

Liberação das drogas

No campo das idéias não vejo problema algum nas pessoas discutirem isto. Agora, para mim, isto é crime e como tal tenho como obrigação de atuar. Acho que temos de fazer a seguinte reflexão: qualquer atividade econômica humana tem fases, isto é estatística. Para comer arroz nós temos a plantação, a distribuição...A droga é a mesma coisa. Eu te pergunto o seguinte: se eu tirar o consumidor desta cadeia, estou mexendo neste mercado, contribuindo para terminar? Isso é lógico. Sou contra a descriminalização.

Marcha da Maconha

Acho que como manifestação, sim, mas tem de saber discernir entre apologia e manifestação. Liberar sem saber como vai ser a manifestação...Apologia não dá para se liberar. Agora discutir, isto é outra coisa. É temerária a caminhada porque em Recife, onde foi liberado, por exemplo, apareceu gente até fumando. Então, por prevenção, é melhor que não se faça.

Dependência química

Se o Estado quiser descriminalizar a droga, tem de preparar seu sistema de saúde para recuperar o drogado, porque ele mesmo diz que o drogado é um doente. Vamos descriminalizar a droga? Vamos, mas e depois? Não podemos nos iludir: a mesma pessoa que clama por segurança nas ruas pode ser a mesma que vai para dentro da delegacia ou que faz passeata pela descriminalização. Temos menores que cheiram cola, que fumam maconha porque não aguentam mais ver os pais batendo nas mães, o pai estuprar a irmãzinha, não aguentam mais apanhar. Têm pessoas que cheiram cola e fumam maconha porque têm de dormir ali perto da Rodoviária, debaixo do viaduto, assim como há pessoas que vão fumar maconha numa situação muito mais privilegiada social e economicamente do que eles. Quem vai levar a pior? Entre uma pessoa de classe alta que fuma maconha e uma pessoa dessa, quem está sujeito a virar um trapo humano? Falam da descriminalização da droga mas eu quero ver alguém acender um cigarro de maconha diante do centro financeiro de Amsterdam. Quem fuma maconha lá é discriminado. Tem muita água para passar debaixo desta ponte para se chegar a um entendimento, mas acho que uma reflexão no campo das idéias prolifera a discussão. Porém, hoje, no mínimo, é temerário descriminalizar a droga em função deste disparate que temos na sociedade brasileira.

Perícia técnica

Estamos indo muito bem neste caminho. Os pilares na transição eram polícia científica, inteligência, gestão e corregedoria. Com relação à polícia técnica estamos muito bem. Dentro de dois meses teremos um Instituto Médico Legal (IML) novo, com equipamentos importados. E estamos reestruturando o Instituto Carlos Éboli em termos de equipamentos e vidraria. Estou licitando e comprando um equipamento novo e promovendo a visita dos nossos peritos que trabalham no IML e no ICCE aos respectivos institutos em São Paulo. Gastamos em torno de R$ 3 milhões no IML. Já no ICCE o valor é bem menor. São coisas mais leves e por isso com um custo bem mais barato para nós.

Máfia no IML

Conheço o senhor Daniel Ponte (vice-diretor do IML do Rio que denunciou no Congresso a existência de uma máfia no instituto). Já o atendi e o recomendei que procurasse o serviço de proteção à testemunha. Uma coisa é saber sobre fatos e outra é ter provas. Eu não posso trabalhar com "me disseram, me extorquiram". A minha visão aqui não é mais prender. Precisamos fazer provas porque é a Justiça que extirpará estas pessoas.

Novo IML

O IML vai funcionar 24 horas com controle de entrada e saída de pessoas, material e cadáveres. Vai ser um controle eletrônico e muito bem feito. E teremos ainda câmeras filmando o movimento.

Legado do Pan

O material de inteligência está funcionando a 100%. São softwares de cruzamento de dados e informações, um banco de dados de inquérito e processos judiciais. As grande operações que se vê por aí vêm desta inteligência. Planejamos antes do Pan que este equipamento viesse de acordo com a nossa necessidade para depois dos Jogos. Temos uma sala de centro de crise onde herdamos todo o equipamento para ainda montar no terceiro andar.

Burocracia

Ganhar, nós ganhamos os equipamentos, o problema é que ficou uma comissão para fazer a passagem, mas mudou o secretário Nacional de Segurança e mudou a comissão. Já estamos no terceiro desde que assumi! Agora é que nós começamos a nos reunir. Dia 14 teremos a segunda reunião. Temos um número substancial de câmeras para espalhar pela cidade e ligar com os batalhões de suas respectivas áreas. São em torno de 300 que vão se espalhar. Mas não sei ainda quando teremos elas funcionando, pois aí vem o serviço público. Vou recebê-las e depois licitar a instalação delas. Aí vem uma empresa que se sente prejudicada, entra na Justiça, consegue uma liminar. É complicado.

Salários da PM

O policial militar ganha pouco, muito pouco. O governo vai acenar com um aumento mas enquanto isto não acontece, estamos dando salário indireto. O RioCard, a construção dos ambulatórios para a PM na Zona Oeste, a bolsa Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, ação conjunta para capacitar a força policial). Com ela o policial pode se habilitar num curso pela internet e auferir mais R$ 400 mensais. E a Faetec vai fazer cursos de computação nos batalhões.

Corrupção

A corrupção existe e é inegável, mas estamos trabalhando incessantemente no sentido de provar. Temos uma gama grande de denúncias, mas a denúncia é aquela: "fulano me pediu x, me pediu y". Isso só serve para acenar de que a gente vá em cima. Para você ter uma idéia já ultrapassamos aqui, só em 2007, o número de 200 policiais excluídos da PM sumariamente. Agora, o que a gente precisa é de prova.

Milícias

Eu sei onde tem a milícia, mas não adianta ir lá e encontrar um policial armado a paisana. Ele está lá, e daí? Está na folga, está lá, a mãe mora ali, a namorada, um parente. Não posso bater na porta da comunidade e perguntar: ¿você paga 10 reais para este pessoa?` Se tivesse isto no papel, tudo bem. Então é ônus nosso produzir as provas e agir como fizemos para desarticular aquela milícia (do vereador Jerominho e do deputado estadual Natalino Guimarães), que eu entendo como a mais bem estruturada. É complicado, mas lutamos muito para construir provas com qualidade. E o que tem qualidade demanda tempo.