O Globo, n 32.306, 18/01/2022. Política, p. 4
PLATAFORMA RECICLADA
Daniel Gullino, Jussara Soares e Dimitrius Dantas
Bolsonaro ataca PT e afaga liberais e conservadores
Acossado pelo mau desempenho nas pesquisas e pelo alto índice de reprovação ao seu governo — 53%, segundo o Datafolha —, o presidente Jair Bolsonaro vem apostando numa forma de reciclagem do discurso que lhe garantiu a vitória nas urnas em 2018: liberal na economia e conservador nos costumes. De olho no eleitorado que se distanciou dele, o mandatário da República reafirmou sua disposição de vetar a liberação dos jogos de azar no Brasil e, numa crítica ao PT, saiu em defesa da reforma trabalhista aprovada em 2017.
Ainda que mantenha Paulo Guedes à frente da Economia, Bolsonaro não seguiu todo o receituário propagado na campanha eleitoral — houve poucas privatizações, por exemplo, e o presidente resiste a acelerar a reforma administrativa.
Ontem, no entanto, ele afirmou à “Radio Viva”, do Espírito Santo, que “mente” quem afirma que as mudanças nas regras trabalhistas tiraram direitos do povo.
— O governo (Michel) Temer fez uma pequena reforma trabalhista. Não tirou direito de nenhum trabalhador. Mente quem fala que a reforma do Temer retirou direito do trabalhador. Até porque os direitos estão lá no artigo sétimo da nossa Constituição, não podem ser alterados —disse.
As alterações, propostas pelo então governo Temer e aprovadas pelo Congresso, atenderam a um pleito do empresariado, favorável à flexibilização de pontos da legislação que rege as relações entre empregado e empregador.
Diferentemente do que afirmou o presidente, porém, a reforma alterou artigos da Consolidação das Leis do Trabalho — estabeleceu, por exemplo, novas regras sobre férias, banco de horas, jornada de trabalho e demissão. De acordo com o governo à época, a intenção ao flexibilizar as atribuições dos empregadores era desburocratizar as relações de trabalho e estimular a geração de empregos. Um dos principais pontos foi a permissão para que os acordos firmados entre sindicatos e empresas tenham força de lei quando versarem sobre alguns itens, como jornada, participação nos lucros e banco de horas.
A pregação de Bolsonaro tem dois endereços. O primeiro é o seu principal adversário, o ex-presidente e líder das pesquisas de intenção de voto, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No início do mês, ele e a presidente da legenda, deputada Gleisi Hoffmann (PR), elogiaram a decisão do governo espanhol de revogar mudanças que haviam sido feitas na legislação trabalhista daquele país. Aprovada em 2012, alei serviu de modelo para o pacote brasileiro de 2017.
Ao disparar contra o candidato petista e sair em defesa da reforma, Bolsonaro faz um aceno aos entusiastas de políticas liberais, um dos grupos entre os quais o presidente perdeu terreno. Desde que assumiu, em 2019, além da agenda de privatizações ter travado, ele viu a inflação dos 12 meses anteriores acumular alta de 10,74% em dezembro e o desemprego atingir 14,6 milhões de brasileiros em 2020, no auge da pandemia —no mês passado, havia 12,9 milhões de desocupados no país.
“ROUBALHEIRA”
Nos últimos dias, o presidente tem repetido que a inflação é reflexo dos estragos econômicos provocados pelo coronavírus e buscado atrelar a alta dos preços do combustível aos escândalos de corrupção na Petrobras, ocorridos durante os governos petistas.
— Ano passado, nós pagamos R$ 100 bilhões de dívida da Petrobras. Dívida contraída do dinheiro usado para corrupção. Tem gente que diz aí que o cara (Lula) é a solução para os problemas do Brasil. Preço do combustível? Tem a ver com as roubalheiras do passado — disse Bolsonaro ontem a apoiadores.
Aliados do presidente apostam ainda que mirar o PT e lançar dúvida sobre um eventual novo governo Lula é o melhor caminho para desviar o foco das críticas ao comportamento de Bolsonaro e a coleção de crises de sua gestão, principalmente no enfrentamento à pandemia da Covid-19. Parte da estratégia de campanha foi antecipada no domingo em um artigo publicado no GLOBO pelo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira. No texto com uma série de críticas a Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff, ele indica que o objetivo é apresentar uma imagem de governo comprometido com a responsabilidade fiscal.
Em outro movimento de ontem, o titular do Palácio do Planalto tratou de afagar outra parcela do eleitorado que ajudou a elegê-lo três anos atrás e que agora também apresenta claros sinais de descontentamento. Trata-se dos evangélicos, que historicamente trabalham contra a liberação dos jogos por acreditarem que a prática retira fiéis dos templos religiosos e estimula a gastança descontrolada. Em dezembro, uma pesquisa Ipec registrou empate técnico entre Lula (34%) e Bolsonaro (33%) no segmento, motivo pelo qual o titular do Palácio do Planalto precisa recuperar terreno.
GUEDES EXPOSTO
O presidente afirmou que os jogos “não são bem-vindos no Brasil” e prometeu vetar o projeto que legaliza a prática, caso a proposta seja aprovada no Congresso. Ao abordar o tema, contudo, o presidente deixou claro que o próprio Legislativo poderá derrubar sua decisão.
—No Parlamento, foi aprovado o regime de urgência desse projeto, se não me engano, com 300 e poucos votos. É um sinalizador que, se eu vetar aqui, o veto seria derrubado lá. Já fui sondado, por algumas lideranças, (sobre) como me comportaria em aprovando o projeto. Eu falei que vetaria o projeto.
Em dezembro, a Câmara aprovou, por 293 votos a favor e 136 contrários, a urgência da proposta de legalização dos jogos. Isso dá prioridade na tramitação do projeto, que pode ser analisado em fevereiro, no retorno dos trabalhos legislativos. Caso o texto seja aprovado, ele ainda teria que passar no Senado.
Se, por um lado, prestigia o público religioso, a frase de Bolsonaro expõe o crescente enfraquecimento de Guedes, um dos principais fiadores do então postulante ao Planalto em 2018, sobretudo entre eleitores liberais. O ministro da Economia defende a legalização da prática — o setor seria mais um a recolher impostos, aumentando a arrecadação, além do potencial de atrair turistas.