O Globo, n 32.308, 20/01/2022. Política, p. 4
ANTÍDOTO CONTRA AS FAKE NEWS
Mariana Muniz e Marlen Couto
Sem representação no Brasil e ignorando a Justiça, Telegram pode ser banido pelo TSE
No intuito de prevenir o impacto das fake news nas eleições deste ano, a Justiça Eleitoral brasileira estuda entrar em ação contra o aplicativo de mensagens Telegram, considerado por especialistas atualmente a fronteira digital mais fértil para a desinformação. Entre as medidas avaliadas estão envolver o Congresso na discussão sobre a falta de controle nas plataformas e, no limite, proibir o uso do aplicativo no país. A opção mais drástica, a ser debatida por ministros do TSE, seria o antídoto para um caso particular: a empresa, ao contrário das outras redes sociais ou aplicativos, não tem representação jurídica nem endereço no Brasil e jamais respondeu às tentativas de notificação feitas pelas Justiça Eleitoral desde 2018.
Nas últimas semanas, o presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, voltou por diversas vezes a tentar entrar em contato com o Telegram. Uma delas ocorreu em 16 de dezembro, quando o tribunal encaminhou um ofício ao diretor executivo do aplicativo, Pavel Durov, solicitando uma reunião para discutir formas de cooperação sobre o combate à disseminação de fake news. O email jamais foi respondido. No texto, Barroso ressaltou que o Telegram é um programa de mensagens de rápido crescimento no Brasil, presente em 53% dos smartphones do país.
O debate no TSE foi revelado ontem pelo jornal Valor. Em nota ao GLOBO, Barroso diz que “nenhum ator relevante no processo eleitoral de 2022 pode operar no Brasil sem representação jurídica adequada, responsável pelo cumprimento da legislação nacional e das decisões judiciais.”Tais argumentos justificariam uma investida extrema contra a empresa. “O TSE já celebrou parcerias com quase todas as principais plataformas tecnológicas e não é desejável que haja exceções”, finaliza o comunicado. Na volta do recesso do Judiciário, em fevereiro, o ministro discutirá internamente com os demais colegas quais providências podem ser tomadas.
PODERES ENVOLVIDOS
Estar fora do alcance das autoridades judiciais é apontado como o principal problema do Telegram para o TSE, mas há outras questões ligadas ao seu funcionamento. O aplicativo permite a criação de grupos de até 200 mil membros, além de listas de transmissão sem limite de usuários — ambos são terrenos férteis para a disseminação de conteúdos falsos. Ao optar pelo eventual banimento, o TSE pode determinar a remoção do programa das lojas de aplicativos, como Apple Store ou Google Store, o que na prática impediria as pessoas de baixarem o programa. Uma alternativa mais radical seria um bloqueio via operadoras de telefonia provedoras de internet, que impediriam o tráfego entre celulares e computadores brasileiros e os servidores do Telegram. A possibilidade é prevista no Marco Civil da Internet.
No Judiciário, há a convicção de que a responsabilidade de combater o problema deve ser compartilhada com outro Poder. Interlocutores do TSE afirmam que cabe ao Congresso aperfeiçoar as leis de modo a coibir situações como essa.
Embora vista como possível por uma ala no comando do TSE, a saída por eventual banimento não é unanimidade. De acordo com relatos feitos ao GLOBO, auxiliares responsáveis por questões técnicas no gabinete de ministros entendem que, como o Telegram não é provedor de internet, mas um aplicativo de mensagens, não há a exigência de domicílio jurídico nacional.
Além do e-mail, o TSE tentou enviar cartas físicas ao escritório do Telegram. Ninguém foi localizado no suposto endereço, nos Emirados Árabes. Os registros dos Correios mostram que houve quatro tentativas de entrega. Os motivos apresentados foram “empresa sem expediente” e “carteiro não atendido”.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam que há caminhos jurídicos para um eventual bloqueio do Telegram para além da discussão legislativa. Diretor do InternetLab, o advogado Francisco Brito Cruz explica que muitos países, inclusive o Brasil, já bloqueiam aplicativos e sites, como os usados para downloads de filmes e músicas que esbarram em direitos autoriais. O pesquisador, porém, chama a atenção para a gravidade de um eventual bloqueio:
— Eles não têm consequências só políticas, mas econômicas e sociais. Em contrapartida, o Telegram põe o diálogo em situação complicada. Uma coisa é não ter escritório no Brasil por opção, outra é não estabelecer diálogo algum. Fica difícil justificar do ponto de vista político.
Ao menos 11 países já bloquearam ou ainda bloqueiam o Telegram. Um deles é a Rússia, onde o aplicativo foi criado. A suspensão ocorreu entre 2018 e 2020, sob a justificativa de que a plataforma não entregou dados de usuários suspeitos de envolvimento em ações terroristas.
Os especialistas citam ainda os inquéritos sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, que miram os atos antidemocráticos e disseminação de fake news como alternativas para eventual bloqueio do Telegram, uma vez que o aplicativo não tem respondido a decisões que envolvem coleta de dados de alvos dos inquéritos.
Outra opção, apontam, é o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) de uma ação que questiona a previsão, no Marco Civil da Internet, da possibilidade de decisões judiciais bloquearem serviços de mensagens, como o WhatsApp. Os ministros Edson Fachin e Rosa Weber entenderam que uma decisão judicial não pode suspender o serviço.
Outra possibilidade envolve a lei eleitoral e prevê exigência de que “sítios” de candidatos e partidos estejam hospedados em provedor de internet estabelecido no país. Críticos a essa interpretação lembram, no entanto, que Telegram é um aplicativo de mensagens.
Vice-presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/ RJ, Samara Castro defende que no legislativo o caminho mais viável é o projeto de lei das Fake News, que contempla a exigência de representação legal no país para plataformas.