Valor
Econômico, 08/05/2020, Política,
p. A8
Especialistas
temem estímulo a invasões
Daniela
Chiaretti
Há
um único consenso entre ambientalistas sobre a medida provisória
910/2019, que batizam de “MP da grilagem” - que a regularização
fundiária é tema importante para o país. Embora reconheçam
avanços no debate desde que o governo apresentou a medida, em
dezembro, e abertura para o diálogo do novo relator, o deputado Zé
Silva (SD-MG), discordam do argumento ruralista e do Ministério da
Agricultura que o instrumento irá beneficiar pequenos proprietários,
proteger indígenas, quilombolas e extrativistas, e que não dará
título de terra a quem ocupou áreas em conflito.
A grande preocupação com a medida é seu potencial de estimular novas invasões em terras públicas e o desmatamento associado ao processo de ocupação. Trata de tema complexo sendo discutido em um momento em que os parlamentares não conseguem debater adequadamente, diante do isolamento imposto pela pandemia.
“É um texto com muitos problemas. Permite legalizar áreas que foram griladas. Neste momento, tudo o que não precisamos é da sinalização de que áreas invadidas podem ser legalizadas”, diz Sueli Araújo, ex-presidente do Ibama.
A base da MP é a autodeclaração de quem ocupou a terra. “Funciona assim: eu me declaro posseiro deste imóvel da União e quero o título”, diz o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara. Lembra que a MP amplia as regras, antes restritas à Amazônia, para todo o Brasil. “O que aconteceu foi uma corrida em busca de terras públicas no país e na Amazônia, dando impulso ao desmatamento”, registra.
Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mostram que o desmatamento em terras públicas (somando-se unidades de conservação, terras indígenas e áreas não designadas) representou 36% do total no bioma amazônico entre janeiro e março de 2019. Este percentual chegou a 50% no mesmo período de 2020.
Na busca por consenso, o relator atendeu ambientalistas em vários pontos. “Mas não atendeu um decisivo: a regularização de grandes glebas. Não aceitamos regularizar terras gigantes”, diz Agostinho.
Um ponto de preocupação com a MP é que a regra anterior permitia dispensa de vistoria para titulação de imóveis até quatro módulos fiscais (400 hectares na Amazônia) e agora a amplia para até 15 MF (1500 hectares na Amazônia).
“A vistoria prévia à titulação é uma forma de se garantir que a área cumpre requisitos legais e indicar que a terra não está em conflito com outras demandas, como territórios ainda não reconhecidos de comunidades tradicionais”, diz Brenda Brito, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
O texto propõe que a vistoria seja feita por sensoriamento remoto. “Agilizar a regularização fundiária é importante”, reconhece Sueli. “Mas não se enxerga por satélite se o ocupante da terra expulsou dali pessoas de baixa renda, indígenas ou populações tradicionais”, explica Sueli, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, rede que agrupa 50 ONGs.
Brenda alerta que o texto da MP não propõe um sistema robusto de checagem para dispensa da vistoria. Além disso, ignora bancos de dados governamentais que podem indicar potenciais conflitos.
Outro ponto polêmico é permitir a titulação para áreas embargadas por desmatamento ilegal, desde que a pessoa que pede o título se comprometa com um Termo de ajustamento de Conduta (TAC) com o órgão ambiental. “Ao premiar o desmatamento com o título de terra, o governo sinaliza que o crime compensa, o que pode estimular ainda mais invasões de terras públicas”, diz Brenda.
Marcello Brito, presidente do conselho diretor da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) defende a MP. “Será uma das mais importantes para o setor do agronegócio dos últimos anos”. Segue: “Não vamos conseguir ter um controle mais sério do desmatamento e nem aplicar um modelo de desenvolvimento efetivo na Amazônia sem regularização fundiária”.
Mas se para os pequenos o processo têm que ser rápido e descomplicado - “gente que há décadas aguarda a regularização e engloba mais de 90% das propriedades rurais na fila” - para os médios e grandes produtores o processo tem que ser outro, defende Brito, cofacilitador da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura.
Exemplifica: para regularizar uma terra de 15 módulos fiscais no Pará se pagariam R$ 750 mil pelo Valor da Terra Nua, diz a MP - seriam R$ 12,5 milhões pelo valor de mercado. “Por questão de lisura com a terra pública sugerimos outro procedimento nestes casos”.
A MP tem que ser votada no Congresso até 19 de maio ou perde o prazo de validade. “O movimento socioambientalista não se recusa a debater os problemas fundiários do Brasil”, diz o deputado federal NiltonTatto (PT-SP). “Só não neste momento de pandemia, com o funcionamento remoto do Congresso e com esta MP”.
É a opinião de Alessandro Molon (PSB-RJ): “Não queremos que a preocupação de legalizar a terra dos pequenos agricultores seja utilizada como Cavalo de Tróia para regularizar a grilagem”, diz. “É grave votar um tema complexo como este na situação que o país vive. Não podemos dispersar energia no enfrentamento do nosso maior problema, que é a pandemia.”