O Globo, n 32.309, 21/01/2022. Política, p. 5
Aliado cita rachadinha em gabinete de Bolsonaro
Waldir Ferraz diz à revista que esquema coordenado por ex-mulher do presidente também envolvia assessores de Flávio e Carlos
Aliado de Jair Bolsonaro, a quem assessorou na campanha presidencial de 2018, Waldir Ferraz afirmou à revista Veja que a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente, comandou um esquema de rachadinha que incluía os gabinetes do ex-marido, então deputado federal, do senador Flávio Bolsonaro (à época, deputado estadual) e do vereador Carlos Bolsonaro.
Conselheiro e próximo ao presidente desde a época do Exército, Ferraz disse ainda que até hoje Ana Cristina chantageia Bolsonaro, com pedidos de dinheiro, em troca de seu silêncio. À revista, o ex-assessor afirmou que o presidente não tinha conhecimento do esquema enquanto ele estava em prática e só tomou conhecimento do assunto em 2018, quando as primeiras reportagens foram veiculadas na imprensa.
— Ela fez nos três gabinetes. Em Brasília (na Câmara dos Deputados), aqui no Flávio (na Assembleia Legislativa do Rio) e no Carlos (na Câmara Municipal carioca ). O Bolsonaro deixou tudo na mão dela, para ela resolver. Ela fez a festa. É isso. Ela que fazia, mas quem é que assinava? Quem assinava era ele. Ele vai dizer que não sabe? É batom na cueca. Como é que você vai explicar? Ele está administrando. Não tem muito o que fazer — contou Ferraz.
De acordo com o ex-assessor, o papel de Ana Cristina no esquema de recolhimento de parte dos salários dos funcionários dos gabinetes era o de contratar quem estivesse disposto a devolver parte do dinheiro recebido. Ela recolhia documentos de algumas pessoas, abria contas bancárias em nome delas e retirava parte dos salários.
Ferraz disse também que a ex-mulher do mandatário ainda exige dinheiro e outras vantagens para não contar o que sabe. De acordo com ele, Ana Cristina teria ido algumas vezes ao cercadinho do Palácio da Alvorada para ser vista por Bolsonaro, como uma forma de pressioná-lo.
— Ela é muito perigosa. É uma mulher que quer dinheiro a todo custo. Às vezes, ela vai ao cercadinho, frequenta o cercadinho. É uma forma de chantagem. A gente nem toca nesse assunto pra não deixar o cara (Bolsonaro) de cabeça quente — diz Ferraz.
Ele enfatizou que Bolsonaro e os filhos não sabiam dos esquemas da ex-mulher.
— Ele, quando soube, ficou desesperado, era uma fria. O cara foi traído. Ela começou tudo. Bolsonaro nunca esteve ligado em nada dessas coisas. O cara tinha visão do que estava acontecendo por trás no gabinete. Às vezes, o chefe de gabinete faz merda, o próprio deputado não sabe. Mesmo o deputado vagabundo não sabe, só vem a saber depois.
O policial aposentado Fabrício Queiroz, acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) de ser o operador da rachadinha no gabinete de Flávio no Rio, teria assumido parte do esquema, segundo Ferraz, quando Ana Cristina foi descoberta, mas Bolsonaro, amigo de Queiroz há mais de 30 anos, continuou sendo enganado, conforme Ferraz.
À Veja, Ana Cristina negou que tenha comandado esquemas de rachadinha, que chantageie Bolsonaro e disse que as acusações partem de inimigos que querem atingir Flávio e Carlos.
— Se eu tiver que falar com o presidente, acha que eu vou para o cercadinho para todo mundo ficar vendo, para jornalista ficar vendo? Sou discreta —afirmou.
Procurado pelo GLOBO, Ferraz, em um primeiro momento, negou que tenha feito as acusações:
— Não, eu não falei nada disso. Não falei isso, negativo. Como é que eu ia falar um negócio desse?
Pouco tempo depois, em uma segunda ligação, ele admitiu ter falado sobre “esses assuntos” com a revista:
— O que eu disse para ela (repórter) é o que todo mundo sabe. É o que está nos jornais. Mas eu não participei nem tenho conhecimento de nada.
OUTRAS DECLARAÇÕES
Waldir não é o primeiro com acesso aos gabinetes da família Bolsonaro a admitir a existência do esquema. Ex-cunhada do presidente, a fisiculturista Andrea Siqueira Valle, irmã de Ana Cristina, disse que o mandatário demitiu seu irmão, André Siqueira Valle, porque ele se recusou a entregar a maior parte de seu salário a Bolsonaro, que na época era deputado federal.
Áudios de Andrea obtidos pelo portal UOL mostram que a fisiculturista diz ainda que Fabrício Queiroz não foi o único a recolher os salários de funcionários do atual senador. Ela aponta que a maior parte do salário que recebia do gabinete do filho mais velho do presidente era recolhida pelo coronel da reserva do Exército Guilherme dos Santos Hudson.
Outra ex-assessora de Flávio,Luiza Sousa Paes admitiu, em depoimento ao MP-RJ, que nunca atuou como funcionária do filho do presidente e também era obrigada a devolver mais de 90% do salário.
Luiza relatou ainda que conheceu outras pessoas que viviam situação semelhante à dela, ou seja, eram nomeadas sem trabalhar. Ela citou as duas filhas mais velhas de Fabrício Queiroz, Nathália e Evelyn, e Sheila Vasconcellos, amiga da família do policial. Os dados financeiros das três, obtidos na investigação, já identificaram que elas tinham devolvido para Queiroz R$ 878,4 mil.
Em 2019, o próprio Queiroz, alvo de relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeira (Coaf), que apontou as “movimentações atípicas” em suas contas, admitiu, em depoimento por escrito ao MP-RJ, que fazia o “gerenciamento” de valores recebidos por servidores do gabinete do então deputado, assim como coordenava “os trabalhos e demandas” para expandir as redes de contato e de colaboradores do parlamentar.
Queiroz afirmou ainda que, por ter a confiança e autonomia, nomeava assistentes no gabinete e gerenciando os valores que cada um destes recebia mensalmente, sem precisar dar satisfações a Flávio sobre a “arquitetura interna do mecanismo que criou ”. E que seus superiores não tinham qualquer conhecimento de sua atuação.
No fim do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a maioria das provas que embasavam as investigações sobre o suposto esquema de rachadinha no gabinete de Flávio