Título: Na beira do Capibaribe, a luta contra a maré
Autor: Bernardo Mello Franco
Fonte: Jornal do Brasil, 23/01/2005, País, p. A3

Rio Capibaribe, que aparece em cartões postais do Recife, é uma presença incômoda sob as tábuas que compõem o chão do barraco de Ana Lúcia Gomes. Ela tem 36 anos e vive com o marido e mais oito pessoas - sete filhos e um neto - numa palafita da favela Beira Rio, uma das mais pobres do Recife. Ex-moradora de Brasília Teimosa, ela deixou a comunidade há nove anos para fugir da violência do mar.

- A vida lá era pior, porque as ondas batiam forte e derrubavam os barracos. Só não imaginava que um dia fossem tirar as palafitas. Se o presidente Lula tivesse passado aqui na Beira Rio, nossa vida poderia ser diferente - acredita.

A única fonte de renda da família é a pesca do sururu, que depende da maré. O molusco é colhido semana sim, semana não, e sai entre R$ 3 e R$ 5 o quilo. Enquanto o casal trabalha, as crianças se arriscam brincando sobre pontes estreitas que ligam os barracos, a dois metros do espelho d'água.

O cheiro do esgoto toma a pequena casa, escura mesmo durante o dia, onde não há banheiro e a água usada para os banhos e a lavagem de roupas chega da única bica instalada pelo estado na região.

Ana Lúcia já se inscreveu em programas de assistência, mas não recebe nenhum auxílio do governo. O filho mais velho, que deixou a escola na 4ª série, trabalha com ela. A filha de 16 anos é deficiente mental e vive reclusa num pequeno cômodo, e os outros sofrem com piolhos e coceiras causadas pela água poluída.

Fora da vida de maré, a maioria dos moradores do local não encontra oportunidades de trabalho. Sofre o estigma das palafitas e leva desvantagem na disputa por vagas de baixa remuneração no mercado.

Depois da remoção das 561 famílias que moravam na área oceânica da favela Brasília Teimosa, ainda restam cerca de 23.500 palafitas espalhadas pela cidade, informa o prefeito João Paulo, que promete remover e indenizar as famílias da Beira Rio este ano.