Título: Tráfico sem influência
Autor: Magalhães, Raphael de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 18/05/2008, Opinião, p. A11

ex-ministro da Previdência Social e ex-governador da Guanabara.

A artilharia dos rentistas mirou firme em cima do BNDES. Por coincidência, no mesmo momento em que o banco ¿ o maior banco de fomento do mundo: (a) ¿ liderava a reestruturação do setor de telecomunicações, musculando um grupo brasileiro para alcançar escala suficiente capaz de garantir mercado para uma robusta indústria nacional de componentes eletrônicos; (b) ¿ anunciava uma nova política industrial fundamental para o país escapar da armadilha de conspícuo exportador de commodities e converter-se, gradualmente, num "player" relevante no mercado mundial de bens industrializados, de maior valor agregado.

Na guerra ideológica que se trava entre rentistas e desenvolvimentistas, os rentistas, nos últimos dias, entrincheirados nas arcas do Banco Central, acumularam vitórias: (a) ¿ impingiram ao país uma desnecessária como inconveniente e impotente elevação da taxa Selic, para combater uma pseudoinflação de consumo, quando a elevação de preços é conseqüência do aumento dos preços dos alimentos no mercado internacional provocado pela combinação de um surto especulativo com as commodities e pela oferta insuficiente de produtos para atender uma demanda mundial em disparada; (b) ¿ arrancaram um investiment grade envergonhado e apresentaram este diploma como prova irrefutável do acerto da política macroeconômica ainda predominante; e (c) ¿ lançaram, por fim, suspeitas sobre a lisura do BNDES, instituição modelar do Estado brasileiro de conceito e reputação consolidada ao longo de sua história.

O efeito real da elevação da taxa Selic foi direto na veia: a elevação da taxa de juros melhorou a renda dos rentistas, deteriorou as contas públicas, valorizou, ainda mais, o real, tudo sem qualquer impacto efetivo sobre o custo de vida.

Mas o prestígio do banco, neste clima de denuncismo generalizado que se abateu sobre o país, só não ficou maculado pela absoluta inconsistência das imputações, fundadas em vagas gravações efetuadas pela polícia na investigação de caso de prostituição. Pois, afinal, o banco veio para a berlinda pela suposta intermediação que envolveria um membro do seu Conselho de Administração para facilitar empréstimo a uma prefeitura paulista, de resto tripulada por um representante do PSDB ¿ o principal partido de oposição ao governo.

Todos sabem que a função do conselheiro do BNDES, como de qualquer organização bancária que tenha conselho de administração, não confere ao titular prerrogativa para interferir nos processos de concessão de crédito. Se isto é verdade nos bancos privados, no caso do BNDES, este cuidado, exatamente por se tratar de instituição pública, é levado a extremos a ponto de o banco ter incorrido sempre na acusação de ser uma organização burocrática, e até mesmo lenta no seu processo decisório interno. Um pedido de empréstimo no BNDES passa por gerentes, equipes de avaliação, chefes de departamentos, superintendentes, para, afinal, ser decidido pelo colegiado dos diretores, sob o comando do presidente.

Para que um conselheiro interfira no processo, ele tem de cooptar não uma, mas várias pessoas nesses diferentes níveis hierárquicos. Se o fizesse deixaria rastros, inexoráveis, fácil de serem descobertos pela Polícia Federal, se eventualmente esta intermediação fosse efetivamente tentada. Como pode, nestas condições, um conselheiro fazer tráfico de influência e ser remunerado por supostos serviços quando nenhum conselheiro ou mesmo diretor, a não ser se conseguir promover uma vasta conspiração interna na instituição, ter poder decisório em matéria de empréstimo?

Se, por acaso, houve distribuição de propina, procure-se em outro endereço, talvez na prefeitura, e não no banco. Pois é claro que o BNDES nada tem a ver com o destino dado por uma prefeitura a empréstimo que fez junto a ele. Atribuir à instituição responsabilidade pelo uso irregular que um mutuário tenha feito dos recursos emprestados é o mesmo que atribuir a qualquer banco responsabilidade pela compra de drogas feita por um tomador de empréstimo.

O banco emprestou porque a operação se enquadrava nos seus padrões operacionais, a prefeitura estava habilitada a postular o empréstimo e a oferecer as garantias necessárias ao pagamento de mútuo com os respectivos encargos. Assim, do ponto de vista do banco, a operação não envolve qualquer risco ao crédito concedido nem implicou desvio dos vultosos recursos por ele geridos. Nenhum centavo sob gestão do banco foi desviado para pagamento de propina a quem quer que fosse. Como não haverá qualquer possibilidade de o banco perder dinheiro com a operação e do erário sofrer qualquer perda: o mútuo, com os respectivos encargos, na forma contratada, terá de ser liquidado integralmente. Pois, o banco, como é de sua rotina, cercou a operação de todas as garantias necessárias para recebê-lo integralmente, como faz com todos os seus créditos.