O Estado de S. Paulo, n. 47973, 20/02/2025. Política, p. A10
PGR vê dobradinha entre ex-presidente e ‘Abin paralela’ por ruptura
Rayssa Motta
Zeca Ferreira
Rayanderson Guerra
Karina Ferreira
Juliano Galisi
Pedro Augusto Figueiredo
Denúncia cita ataques às instituições para “execução do plano maior de ruptura com a ordem democrática”.
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e aliados instalados na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) promoveram ataques coordenados às urnas eletrônicas e a ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) que acusa o ex-chefe do Executivo federal e mais 33 por tentativa de golpe de Estado.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, afirma no documento que houve uma atuação conjunta de Bolsonaro e integrantes da chamada “Abin paralela”, e que essa cooperação era parte do plano golpista. “Em relação ao sistema eletrônico de votação e aos ministros do Supremo Tribunal Federal/Tribunal Superior Eleitoral, as ações da célula de contrainteligência intensificaram-se a partir da radicalização dos discursos públicos de Jair Bolsonaro, em meados de 2021, caracterizando o início coordenado da execução do plano maior de ruptura com a ordem democrática”, diz trecho da denúncia enviada anteontem ao STF.
O procurador-geral destaca ainda que havia uma “consonância” entre os ataques de Bolsonaro e os alvos escolhidos pela “Abin paralela”, o que, segundo Gonet, confirma a “ação coesa da organização criminosa”. “As ações ilícitas realizadas pela denominada ‘Abin paralela’, de forma indubitável, consistem em atos executórios relevantes do plano de crimes contra as instituições democráticas, por potencializarem a animosidade social contra as instituições, enfraquecendo-as e restringindo-lhes o exercício”, afirma o chefe do Ministério Público.
A denúncia aponta também que relatórios de contrainteligência produzidos por aliados de Bolsonaro eram repassados a perfis falsos ou “cooptados” para espalhar fake news e desinformação. “Os verdadeiros beneficiários políticos da desinformação eram, assim, distanciados dos ilícitos.”
MONITORAMENTO. A instrumentalização do aparato de inteligência para fins políticos começou logo no início do governo Bolsonaro, em 2019, segundo a denúncia. Os sistemas da agência foram usados não apenas para espalhar fake news, mas também para monitorar autoridades que seriam “alvo de ações programadas com mais violência”.
À época dos fatos narrados, o diretor-geral da Abin era Alexandre Ramagem, atualmente deputado federal pelo PL do Rio, e a agência era subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), então chefiado pelo general Augusto Heleno. O deputado e o general também foram denunciados pela PGR. Conforme Gonet, Heleno “tinha pleno domínio sobre as ações clandestinas realizadas pela célula”.
“A estrutura era composta por policiais federais cedidos à Abin e oficiais de inteligência que atuavam sob o comando do então diretor-geral, Alexandre Ramagem. O núcleo atuava como central de contrainteligência da organização criminosa que, por meio dos recursos e ferramentas de pesquisa da Abin, produzia desinformação contra seus opositores”, afirma a PGR. O deputado do PL comandou a Abin de julho de 2019 a março de 2022.
Em janeiro do ano passado, Ramagem foi alvo da Operação Vigilância Aproximada, da Polícia Federal, sob suspeita de promover espionagens ilegais quando era chefe da Abin. Os alvos seriam nomes que Bolsonaro considerava adversários. O deputado negou os monitoramentos ilegais.
CRIMES. Os crimes imputados a Bolsonaro e aos 33 denunciados são os de organização criminosa, abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado com uso de violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas podem chegar a 43 anos de prisão.
Dos cinco crimes atribuídos pela PGR aos acusados, dois foram sancionados pelo próprio Bolsonaro quando era presidente, em setembro de 2021: abolição violenta do estado democrático de direito e golpe de Estado. Os ilícitos foram incluídos no Código Penal pela lei de crimes contra a democracia. O texto revogou a antiga Lei de Segurança Nacional, herança da ditadura militar (1964-1985), e tramitou por 30 anos no Congresso.
A lei prevê reclusão de quatro a oito anos para quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o estado democrático de direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Já o artigo 359-M, que trata sobre o crime de golpe de Estado, pune com quatro a 12 anos quem “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.
TURMA. A denúncia contra os 34 investigados foi encaminhada para o ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do caso. Ontem, o magistrado derrubou o sigilo da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, outro acusado. Moraes será responsável por analisar a acusação formal e encaminhála à Primeira Turma da Corte, que decidirá se os denunciados se tornarão réus ou não. Segundo o regimento interno do tribunal, o colegiado também será responsável por julgar Bolsonaro e seus aliados.
No entanto, isso não impede que a ação penal seja encaminhada ao plenário.
Caso isso não ocorra, o destino do ex-presidente ficará nas mãos de cinco ministros: além de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Cristiano Zanin e Flávio Dino. A composição do colegiado é considerada desfavorável a Bolsonaro. Primeiro, porque os dois ministros indicados por ele para a Corte, Kassio Nunes Marques e André Mendonça, integram a Segunda Turma. Além disso, a Primeira Turma conta com magistrados pouco alinhados ao ex-presidente, como Moraes, com quem mantém atritos frequentes, e Dino, que foi ministro da Justiça do governo Lula.
O advogado Paulo Amador Cunha Bueno, que representa Bolsonaro, já argumentou que Moraes não deveria julgar o expresidente, pois o ministro é citado como um dos alvos de um plano que, de acordo com a denúncia, pretendia matar o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva e o vice Geraldo Alckmin depois da eleição de 2022.
JUSTIÇA ELEITORAL. A denúncia da PGR não altera a situação de inelegibilidade de Bolsonaro. Condenado pelo TSE em três ocasiões (duas sentenças seguem em vigor), o ex-presidente está impedido de concorrer a cargos eletivos até 2030.
Em junho de 2023, a Corte Eleitoral condenou Bolsonaro por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, por causa da reunião com embaixadores em que ele atacou o sistema eleitoral do País, sem apresentar nenhuma prova. Em outubro do mesmo ano, foi sentenciado mais uma vez, por abuso de poder político durante o feriado do 7 de Setembro em 2022. O ex-presidente usou a data para fazer campanha eleitoral, segundo o entendimento dos magistrados do TSE.
DE FORA. Na acusação formal enviada ao STF, Gonet optou por não denunciar o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. Além do dirigente, outras nove pessoas inicialmente indiciadas pela PF em novembro passado no inquérito do golpe ficaram de fora da peça.
Entre os que não entraram nesta denúncia estão um padre e um jurista que, segundo as investigações, atuaram na elaboração de minuta golpista. O influenciador argentino Fernando Cerimedo, que divulgou informações falsas sobre as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral, e um ex-assessor de Bolsonaro, Tércio Arnaud Tomaz, também ficaram de fora. •